Office in a Small City por Edward Hopper

O diário de um morto. 4

A resposta a um enigma, quando encontrada, é sempre mais simples que o próprio enigma.
Por vezes, simples demais, de uma simplicidade constrangedora, podendo ser resumida numa frase que surpreenderá a todos e chegará a ser infantil.

Página 63. Identidade provisória, enigmas decifrados, relógios imprecisos, a garota grega, um pensamento simples.

Meus dias escoam-se pela garganta estreitíssima de uma ampulheta que até então eu não tinha como real. Um mesmo princípio embrionário, e nós aqui, frente cada um a um destino, identificados pela esperança, pela ansiedade, pelo vazio. Uma foto e um nome num documento emprestam-me temporariamente palavras – que penso serem minhas, que penso serem eu – e um rosto com características. Nasci, inevitavelmente. O que faça agora, se me destruir ou não, cédulas e certidões provarão que vivi um dia, fui uma pessoa sobre a crosta do planeta. Avisos bancários e cartas, tendo-me como destinatário, provam que eu existo, e já não posso voltar atrás. Fui registrado. Meu sangue circula. Numerado. Meus pés pisam as ruas, meus olhos veem cores e contornos, as formas do dia. Cadastrado. Transpiro, bebo água, penso em mulheres. De maneira absurda, admito que estou preso. De outro lado, tudo terminará um dia, e nunca mais o carteiro trará envelopes com as palavras de meu nome, a cifra que me cabe e não me desvenda. Assim como não é possível conhecer outras milhões de pessoas que viveram e morreram, ninguém se lembrará de que uma vez existi, naturalmente. O que registro nada mais é que um testemunho em uma arca de tempo. Minha morte não será prova suficiente de eu ter sido. Fecha-se o ciclo, a chave está perdida. Se, por engano, cair na portaria alguma correspondência endereçada a mim, perguntarão: “Quem foi?”. E ninguém saberá responder. Cabe ao meu diário, apenas, sua migalha de eternidade. Sua cota de esquecimento.

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A resposta a um enigma, quando encontrada, é sempre mais simples que o próprio enigma. Por vezes, simples demais, de uma simplicidade constrangedora, podendo ser resumida em uma frase que surpreenderá a todos e chegará a ser infantil.

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O despertador, mais uma vez. Um apito de fábrica, o das seis horas. Som de uma sirena, vindo de outra parte, um minuto depois. Mais um, com pequeno intervalo. Bruno consulta seu relógio, diz que o terceiro é que está certo. Para mim, não há certos. Todos julgam ser seis horas e contam, cada um a seu modo, a verdade. O locutor da rádio parece sorrir: “Esta é a estação mais alegre da cidade!”. Tudo nos chama de volta às terras imprecisas do que parece real.

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A garota pouco mais à frente me atrai. Eu a sigo por acaso, mas secretamente. Ela e eu, filhos de um mesmo século, contemporâneos de uma mesma fase da civilização que um dia haverá de ser apenas registro. Suas sandálias repetem as antigas gregas. Vamos os dois por estas ruas, ela caminhando sem saber que é parte de um povo e um tempo. As gerações, uma após outra, vão atravessando os dias, os costumes entre os séculos, os grandes ciclos. Sempre sem saber de tudo. Mas essa jovem terá uma filha, um prolongamento de si mesma. Outra ela. Parece que o impulso que nos traz à vida não é forte o suficiente para… Para o quê? Talvez vivêssemos cada um trezentos anos, com extensas juventudes em relação à nossa consciência, mas os impulsos são fracos, o que torna necessário reproduzir rapidamente, antes de morrer. O mundo assim como é, o instinto dos animais de todo tipo fazendo-os fertilizarem-se entre si, por isso me atraio por ela e não pela fêmea de um ouriço. A garota que sigo, quase persigo, tenho vontade de atacá-la, possuí-la ali mesmo, mas […]

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Numa tarde de sol em que tudo parecia bem, descobri que não era preciso viver. Só queria isto: registrá-lo de maneira simples. Clara.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

77. O diário de um morto 5. Página 81. Inseto e luminária, longa caminhada, pântanos com dinossauros – sequência

75. O diário de um morto 3. Página 59. O imperador e o idiota, fósforo no passado, espectro de Munch, pessoas na esquina – anterior

Imagem: Emmanuelle Vial. Homenagem a Klimt.

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