Office in a Small City por Edward Hopper

O diário de um morto. 3

Eu que não espero nem avanço, antes de me deitar penso no que posso enquanto sou, dou corda ao relógio outra vez.
A morte me orienta, me espanta e redime.

Página 59. O imperador e o idiota, fósforo no passado, espectro de Munch, pessoas na esquina.

Minha vida tem sido uma luta interior incessante entre a insanidade e a lucidez, algo no limiar dessas duas grandezas. Daí, talvez, é que nasce minha febre, dessa fusão, dessa fuga de uma e outra, dos extremos que significa cada uma. Talvez a História não leve a nada. Talvez não haja planos depois do futuro. Leis que obrigam idiotas à vida condenam o imperador à morte. Imperadores e idiotas, outros como eu, e seu sonho de si, por toda parte, sujeitos à cela dos ciclos.

. . .

Olhando fixamente um palito de fósforo apagado, descobri que o passado não existe. Isso é tão idiota que deve encobrir alguma verdade. Tudo que vivi e tem me acontecido até um minuto atrás já não é. Tenho apenas este momento. Pessoas e situações que me envolveram, tudo o que passou trouxe-me ao presente, ao agora, eu aqui como um tolo, observando o fósforo extinto.

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Já sonhei sonhar-me algo além do morto que já sou, cotidiano a desfolhar os dias. Mas deu-se em tudo a face da morte. Não, não a morte incomoda. Viver com a febre. Tenho medo das salas com grandes relógios. Tenho medo de encontrar o espectro de Munch pelos corredores. Eu aqui, um animal sem crença, eu que não espero nem avanço, antes de me deitar, penso no que posso enquanto sou, dou corda ao relógio outra vez. A morte me orienta, me espanta e redime.

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Três pessoas na esquina, eu de minha janela. Estão ali, sem dúvida: respirando, conversando, existindo. Talvez fossem quatro, cinco. Ou nenhuma. Mas são três e tudo está de fato acontecendo. Talvez fossem outras. Ou nada parecido com gente, animais sem pelo que se vestem, tudo de uma gratuidade perturbadora. As pessoas são o acaso. Os encontros são a concretização do acaso. Ninguém é predestinado, até o dia em que se encontra com outro e passa a acreditar nisso. Essas pessoas poderiam estar em qualquer outra esquina, qualquer outra cidade, longe deste país, quem sabe em parte alguma. Mas elas existem como são e estão ali, precisamente. Despedem-se, por fim. Voltam a lugares que não sei, não estão mais ali. Um dia, deixam de existir, não estarão mais aqui nem serão mais três pessoas. Tudo o que acabo de presenciar é tão estúpido que me força a refletir, considerando algo que não compreendo e também não sei como contar. Os sentidos nos distraem. Os olhos nos cegam.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

76. O diário de um morto 4. Página 63. Identidade provisória, enigmas decifrados, relógios imprecisos, a garota grega, um pensamento simples – sequência

74. O diário de um morto 2. Página 55. Local de nascimento, questões de consciência, o alpinista – anterior

Imagem: Emmanuelle Vial. Paleta.

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