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O diário de um morto. 2
De resto, em relação a quê?
Página 55. Local de nascimento, questões de consciência, o alpinista.
As pessoas têm de nascer em algum lugar, por isso estou aqui. Apenas isso. Não me ocorre nenhuma nação, povo ou cultura a que gostaria de pertencer.
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Uma família com crianças. A mãe, irritada com a filha, ameaça-a com expressões e palavras que ela não pode ainda entender. O garotinho insiste em que o pai lhe compre o super-herói da vitrine. Quatro anos, talvez. Há pouco mais de quatro anos, ele não existia, não era nada e nenhuma coisa parecida com nada. Hoje, chora por um brinquedo, anseia por ser também ele um herói, persegue cegamente seus mitos. Ouve, fala, vê: participa da realidade e tem desejos. Assisto especialmente a esse momento. Impressiona-me que seja tudo tão claro, tão nítido. A vitrine, o choro manhoso do menino, a racionalidade dos pais e como todos convivemos naturalmente com essa ofuscante nitidez. Tudo está de fato acontecendo, e é assustador que as coisas aconteçam. Cada uma dessas pessoas circula pela cidade, caminha por sua vida, convencida de que nasceu por alguma razão. Só eu assisto a tudo sozinho e observo: as crianças fizeram-me pensar na escalada do entendimento, a ascendente no gráfico que comporta a compreensão adquirida gradualmente. Suas pequenas consciências em relação à dos pais, adultos, mas superiores à de algum outro mamífero, por exemplo. Quando pequenos, o mundo é nosso berço. Depois, nosso quarto – e a ascendente no gráfico começa a decolar. Explora-se a casa em seus limites, portas e janelas, de onde se verifica a existência da rua lá fora. A calçada. O bairro. A cidade, outras cidades. Países vizinhos. Mapa-múndi. Sistema Solar. Por fim, um universo em movimento, cuja vastidão nos vence, nos torna ao início e nos dá entender nossa ainda condição de berço. A vida sobre o planeta comporta uma multiplicidade de graus de consciência, entre primatas e quelônios, desde um vegetal, cuja consciência ínfima é como se não existisse – mas isso sob nossos critérios –, até o mais prodigioso dos homens. Até onde vai a ascendente no inconcebível gráfico? Pode-se dizer que nossa consciência de mundo (e de universo) seja bastante desenvolvida com relação aos outros animais. De resto, em relação a quê? Em um futuro remoto, o entendimento tende a superar o que vemos hoje, assim como nos admira a escassez de visão nos homens do passado. Então, quanto falta? E o que é esse quanto?
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A primeira dimensão é o tempo, sem a qual não se podem conceber outras. Os físicos a classificam como a quarta, eu sei. Mas não sou físico, posso errar à vontade. A consciência de tempo é privilégio (essa palavra está riscada, lê-se em seguida:) característica dos animais superiores. A religião torna o tempo suportável, por livrá-lo de suas propriedades oxidantes e insinuar a eternidade, assim um tempo que apenas é. E não age. E não passa.
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Amanhecer. O movimento urbano. O caminho para o trabalho. Ruas ainda sem sol, um ônibus lotado. Calçada de folhas secas, um vento. Uma mulher feia e mirrada segue para o serviço. Um canteiro de pequenas flores. Um chafariz desligado, um repuxo de jardim. Uma barata pisada.
Escalo meu dia como a um monte do qual não posso me desviar. Durante a escalada, entre obstáculos e passagens propícias, passo a fazer parte de todos os ritmos presentes, embora uma bruma como inerente à realidade aponte um caminho de dissolução que desde sempre mina o coração de tudo que vive. Bate um sopro de ausência junto a meus passos quando entrevejo com indesejada lucidez o horizonte do tempo. O dia hoje, quando não mais terei de escalar o monte. E não mais haverá o monte, a escalada. O alpinista.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
73. O diário de um morto 1. Página 27. Velha casa, sala de espera, chuva – anterior
Imagem: Emmanuelle Vial. Composição 9 (detalhe inferior).
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