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Dos males, o verão. Parte 5
Divagações com bolhas
CAPÍTULO TERCEIRO
(NO QUAL SE TRATA DESDE DIVAGAÇÕES COM BOLHAS A UMA DISCUSSÃO PARALELA DE ORDEM FILOSÓFICO-RELIGIOSA NUM BORDEL METROPOLITANO POUCO MOVIMENTADO)
Pela manhã, jurei que não prestaria atenção aos ambulantes e desempregados que se multiplicavam pelas esquinas. Mas foi inevitável que ouvisse a voz arrastada de um sujeito moreno, sorriso matreiro e sobrancelhas finas, arqueadas numa expressão de sono. Era magro, de corpo flexível, que balançava todo conforme trocava de pé, como apoio. Estava de pé, naturalmente.
“Isso aí, maninho”, dizia a um colega vendedor de bugigangas. “Hoje em dia a gente faz de se virar na base da trambicagem. Isso aí.”
Parecia satisfeito com sua esperteza. E ali estava ele, tendo de dar duro com sua malandragem de rotina, passando quinquilharias por artigos importados, artigos importados por similares de melhor qualidade, tais similares por outros, já ninguém sabia mais o que era pior, faturando um níquel extra com um preço cantado em dobro. Não era senão mais um malandro iludido, sem futuro, aniquilado pelos tolos que nos governam.
“Isso aí, maninho”, eu deveria ter-lhe dito, solidário. “Pobres de nós.”
Também não pude evitar as lamentações e súplicas de uma mulher envelhecida e suja, que era a própria desgraça encarnada, tendo ao seu redor três crianças seminuas, uma delas chorando muito.
“Esmolinha, por caridade… Pelo amor do Deus Todo-Poderoso…”
O sol estava muito forte, e isso me deprimia. Por que verões tão intensos, que nos fazem tão mal? Não se dá dois passos sem ter a camisa grudada de suor.
À hora do almoço, disse a um colega que iria comer um sanduíche na outra ala dos calçadões, para despistá-lo. Nem isso eu fiz. Como ele insistisse em saber por quê, inventei que teria de procurar um tipo de binóculo multivisor tripartido para usar no estádio quando fosse aos jogos (aliás, não sei de onde tirei isso, deve ter sido a fome), e ele então assentiu, com um sorriso aprovador. Eu sabia que ele era um torcedor assíduo e frequentava os estádios por qualquer joguinho maçante, por isso inventei-lhe toda aquela asneira.
“Ahn…”, fez ele, compreendendo. E despediu-se.
Era notável. Eu não ia a estádios, não torcia por time algum, não tinha dinheiro para comer um doce, quanto menos para comprar um binóculo. E por sinal nem sabia ao certo se existia isso de multivisor tripartido, mas foi o que me ocorreu. Bem que, no fim das contas, a invencionice acabou servindo.
Eu tinha uma hora inteira para gastar com a minha fome. Tentava concentrar-me em qualquer outra coisa, era preciso esquecê-la. Depois de um tempo, ela desaparece, para só voltar mais tarde, assim é a fome. Como não tinha nada para fazer, entrei em uma livraria. Fucei um pouco, mas acabei saindo logo depois, deprimido. A literatura de fato me atrai, mas de que serve literatura numa situação dessas? Além do quê, tinha visto o suficiente para entediar-me com a reedição de uns policiais, uns esotéricos, dos mais confusos aos mais fantasiosos, e a aridez repetitiva dos títulos norte-americanos.
De lá, saí andando pelo calçadão, e acabei debruçado no viaduto, olhando o trânsito lá embaixo, depois o aglomerado de edifícios que seria um horizonte. O sol estava forte. Perto de mim, um magricela vendia canudos e gradinhas para fazer bolhas de sabão. Espalhava verdadeiras nuvens de bolhas no ar, soprando-as na brisa quente do meio-dia. Neste país, até bolhas se vendem.
“Olha só, que beleza!”, chamava.
Prometi que não o olharia pela segunda vez, porém o vento soprava as bolhas em minha direção, e eu não conseguia esquecê-lo – ao vendedor, não ao vento. Elas passavam bem à minha frente, flutuando em zigue-zague, cintilando ao sol desse dia, e algumas refrescavam-me a orelha ou a fronte ao estourarem com delicadeza, esvanecendo-se subitamente. Eu assistia ao fluxo do tráfego e abrangia, com os olhos, os edifícios a uma distância próxima. Três dias sem comer não podem me matar. Claro que não. Vou agir naturalmente aonde quer que vá. Sem perder de vista minha dignidade. Três dias não duram sempre. Mais tarde, vou me lembrar disso com ironia, tenho certeza. Tenho que manter a calma e deixar de pensar nos aposentados e nos ambulantes. É isso. Depois que passar, passou. Tudo se transforma em passado, em lembrança, em nada. E o tempo, tão grande… Pensar que daqui a cem anos nenhum de nós… Reprimi um estranho arrepio, algo semelhante a uma súbita sensação de medo, uma fagulha, eu diria, muito breve, mas incômoda. Sempre que chego a isso, pego-me outra vez considerando o inevitável futuro, questionando o envelhecimento, a morte e outras coisas aborrecidas que não dependem de mim. Um animal, por exemplo, quando está com fome, não fica divagando. Por que não fazer como eles? O dia é hoje, como não? Cem anos, imagine-se. E cem anos, como estes meus três dias, também passam. No tempo das fogueiras pré-históricas, não havia muito o que fazer da vida e, desde que não se dessem invernos rigorosos ou ciclos de escassez de alimentos, também não havia por que ir-se embora de algum lugar. Quanto tempo, desde nosso ancestral antropoide, desde como ele vivia e se alimentava, como corria e fugia… Durante centenas de milhares de anos, nós nos adaptamos a uma certa maneira de viver. Mas vivemos hoje um mundo artificial, e isso está começando a nos perturbar. Séculos são pouca coisa. Não sei quem desenhou a primeira linha reta, mas veja-se onde estamos hoje. Esses carros aí embaixo, os motoristas ainda vivos. Um dia não se encontrarão mais esses modelos de automóveis, nem as ruas serão as mesmas. Mais tarde, ninguém se lembrará desses edifícios todos. Os arqueólogos terão dificuldade em identificar o nome desta cidade, que talvez nunca mais se conheça. E surgirão outros centros, em outros lugares. Ao mesmo tempo, essas atribulações e compromissos, os objetivos imediatos, a luta incessante, o estômago… Uma bolha estourou bem na ponta do meu nariz.
Nisso, minha fome deu insistentes sinais de sua realidade, como a lembrar-me de que eu não vivia só de pensamentos tolos e divagações. Mesmo refletindo sobre inconcebíveis dimensões de tempo, eu tornava a ocupar-me de meus míseros problemas pessoais. À parte isso, tenho uma clara convicção de que não sou um qualquer. Ora, e por que não? Porque fico meditando sobre inúmeros conflitos, em vez de pensar só em mim mesmo. Faço de minhas inquietações algo que possa servir à humanidade, tendo-as acima de meus afazeres individuais. E mesmo com fome, continuava pensando assim – ou, talvez, justamente por estar com fome. Exemplo: antes, eu pensava que a miséria institucionalizada pudesse levar um povo à revolta; hoje, sei que estou enganado, pelo menos quanto ao nosso povo. Faca de dois gumes: enquanto cada um de nós tem de se preocupar com a difícil tarefa da sobrevivência, não acompanhamos com a devida atenção as técnicas que usam para nos explorar. Pode ser também que nada do que penso seja certo. Mesmo assim, sinto-me especial. Mas qual de nós não se sente assim e não pensa como eu sobre si mesmo? Até o mais desprezível dos indigentes sente-se importante, do contrário não se esforçaria para continuar vivendo. Até aquele louco da vassoura que… Oh, maldita merda! Não consigo esquecer aquele louco da vassoura.
As bolhas passavam à minha frente, entre uma brisa e outra, e eu pensava: será que tudo isso tem realmente alguma importância? Será que vale a pena levar a sério o que quer que seja? Tudo o que estou vivendo, o tão pouco que todos nós dividimos em cada época, isso tudo que… Outra bolha pipocou-me levemente no rosto, fazendo cócegas.
“Olha que beleza!”
Fiquei ali algum tempo, pensando em minha fome. As bolhas cintilavam, dançavam ao meu redor. De repente, lembrei-me de algo – isto é, de alguém. Quando deixei a mureta do viaduto, já vislumbrava uma perspectiva de salvação – seria exagerado o termo? De qualquer forma, eu saía de lá com uma ideia na cabeça. Um estômago na mão e uma ideia na cabeça. Uma ideia, enfim.
A conspiração dos felizes – Guia de leitura
Pior é não ser o fim – anterior
Encontro no bordel: novas esperanças – sequência
Imagem: Oona Hassim. Trafalgar Square. 3
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