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Acesso irresistível
O fato é que ele nos contagiou, nos pôs felizes por alguns minutos, irresistivelmente felizes.
Por algum motivo, a rotina burocrática andava confusa, talvez o acúmulo de trabalho e o esgotamento natural, decorrentes de tais esforços contínuos, minassem o condicionamento dos funcionários, assim prejudicando o resultado das tarefas de ordem prática, que ali todas eram, nem são necessárias muitas teorias, que as consequências de certas causas parecem bastante evidentes. Só os patrões continuavam pregando o bom humor como lenitivo e disfarce, assim nos pondo a trabalhar, de novo no ponto e em ponto, sempre um pouco, um pouco, um pouco mais. Ia atropelado o expediente, como consequência de tais excessos, tanto que causou assombro o fato de uma importante procuração haver passado por mais de um setor e por diversas daquelas mesas, tendo levado às costas carimbos e vistos e rubricas, sem que estivesse sequer assinada. Ninguém viu. “Que horror!”, comentavam as meninas, aparentemente mais impressionáveis. Falação geral – assunto do dia, do ano. Reunião convocada às pressas. Que não se repitam coisas tais, imagine só, se um documento desses cai em mãos erradas, que não as dos administradores da Leôncio & Barradas Advocacia Ltda. Motivo de alerta e atenção de todos. Nada daquilo haveria de se repetir tão cedo, que as possibilidades eram mínimas, em se tratando de uma trágica exceção. Consenso coletivo.
Dois dias depois, outro documento teve a mesma sorte.
“Meu Deus!”, espantavam-se os escravos.
Outra reunião: algo não estava bem. Todos temos um mesmo objetivo, um mesmo ideal, a responsabilidade é de todos nós, a empresa espera que cada um continue cumprindo o seu dever com extremo zelo e competência e seriedade e outras supostas qualidades burocráticas, das quais nunca se acerta dizer se são um elogio ou uma galhofa.
Em meio a um desses dias tensos, percebemos algo como um murmúrio, destoando do ritmo normal de ruídos a que nos havíamos habituado. Pois um escravo que se instalava bem no centro do salão, ele que sempre se classificara entre os mais sérios e menos brincalhões, parecia estar contendo o riso, ninguém sabia o motivo, nem de estar reprimindo uma possível gargalhada, nem o motivo da própria gargalhada. Aos poucos, cada um de nós foi se voltando em sua direção, todos curiosos e desconfiados, duvidando de que aquilo realmente pudesse estar acontecendo. Contudo, esse colega pôs-se a sacudir o corpo, como atacado de uma súbita tremedeira, algum sinal de uma convulsão sabe-se lá em que grau de perigo, para então rebentar numa gargalhada escandalosamente altissonante, pondo-nos a todos surpresos e confusos, e dessa sua sequência de gargalhadas irrefreáveis, tal qual aquele grito imaginário, reservado para o meu último dia, haveríamos de recordar para todo o sempre, em todas as nossas noites de insônia, enquanto vivêssemos. Ele sapateava os pés sob a mesa, dobrando-se para a frente, depois para trás, e não podíamos ver seus olhos, que ele não os conseguia mais manter abertos. Então, num momento, era como se tudo estivesse terminado, porém era só um fôlego para sim seguir-se outra bateria de risadas absolutamente incontroláveis, agora nem nós nem ele nos preocupávamos mais em disfarçar ou enxugar as lágrimas.
“Por que será que ele esta rindo tanto?”, perguntou o Agenor, como se alguém ali pudesse explicar aquele extraordinário sintoma.
“Que eu saiba, ele não ganhou nenhum dinheiro”, relatou a assistente do doutor Aguiar, aquela que agradecia por tudo.
No fim, nunca soubemos o que lhe havia causado aquele acesso. O fato é que ele nos contagiou, nos pôs felizes por alguns minutos, irresistivelmente felizes, quase espontaneamente felizes. Também, como em outros incidentes insólitos envolvendo fenômenos coletivos, nenhum de nós nunca teve coragem de perguntar.
A seta de Verena – Guia de leitura
55. O otimismo dos honestos – sequência
53. Sem ação, sem reação – anterior
Imagem: Edgar Degas. A incrível história das lavadeiras. 1870.
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