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No tempo (e no templo) das enciclopédias
ALBINONI, Tomaso
– compositor italiano (Veneza, 1671 – idem, 1750)
Músico barroco que só se tornou conhecido do público cerca de duzentos anos após sua morte. Com relação à inumerável produção de alguns de seus contemporâneos, Albinoni escreveu um conjunto de obra modesto, mas notadamente valioso. Devido à musicalidade de sua linha melódica, esse compositor tem exercido contínua influência sobre os músicos posteriores. Um de seus adágios alcançou notável popularidade, sendo também um dos mais harmônicos. Bach usou alguns de seus temas em suas fugas […]
Aos quinze anos, cedera à paixão de ler a enciclopédia sabendo a mofo e tempo, que se erguia abandonada nas prateleiras da biblioteca pública. Obstinação, parte de seu caminho, talvez. Desde as primeiras páginas, fora possuído por uma ansiedade crescente, um aperto de frustração, ao verificar que a maioria dos verbetes não lhe interessava. Acadêmicos, cidades, estadistas, imperadores, militares e até santos. Por pouco não desistiu. Pouco, talvez. Em meio a tantos dados dispensáveis, aparecia-lhe de repente o retrato de um homenzinho mirrado e feio, olhos fundos de doente e nada de heroico, instigando-o a levar a cabo toda a insana aventura.
Como Chopin, homens robustos, de olhar paranoico, outros cuja expressão inspirava solidões e ternuras desconhecidas, desfilavam, no papel lustroso e nos tipos escolhidos, suas vidas, seu trabalho, sua busca. Seu medo e coragem, sua glória e esquecimento. Sua tragédia. Assim, ele foi conhecendo e revisitando Dostoiévskis, Einsteins, Fellinis, Galileus, Hoppers. Envolvia-se com as penumbras escandinavas de um Ibsen, com os trajes austrais de um Neruda nevado. Oscilava entre os olhos obscuros de um Pessoa, fulgurantes os de um Strindberg. Às vezes, um Tchekhov. Às vezes, um Valéry. Viajava até Wilde, Yourcenar, Zola, tendo repassado outros tantos que tomariam todas as páginas de seu diário. Com isso, descobriu que até as enciclopédias tinham seu lado útil.
Durante o percurso, muitas vezes maravilhou-se com fragmentos de outras línguas, títulos de obras literárias, nomes de estrelas e constelações, gênero e espécie dos seres vivos. Verbetes concisos, brilhando como pedras preciosas, prensados entre os mais prolixos ou num pé de página, junto à costura. Acontecia estenderem-se tópicos intermináveis, tomando a dimensão de duas páginas abertas, então deparava com um desses oásis como a redimir todo o trabalho dos tipógrafos. Considerava os reis Sancho I e II de Portugal (e outros reis Sanchos sobre os quais naturalmente ninguém queria saber) com seus históricos de crimes, feitos magnânimos, batalhas e trapaças, tudo isso para conservar um trono – mais tarde perdido. Surpreendentemente, oprimidas sob o peso de tais colunas, inseriam-se umas poucas linhas sobre Sancho Pança, e isso sim parecia extraordinário: entre carreiras sangrentas e retratos gloriosos, a enciclopédia dedicava, numa metáfora irônica de diagramação, algumas palavras ao modesto escudeiro, despercebido entre Sanchos esmagadores – mas com maior potencial de eternidade.
“Foi atendido?”
O homem deixava transparecer que alguma coisa ali não o agradava. Explicou a Júlio que era preciso preencher uma ficha para ter acesso àqueles volumes e só pareceu mais satisfeito ao constatar que ele não conhecia o regulamento, o que teve o prazer de revelar-lhe. Acreditou que estivesse interessado em música erudita, por isso fez questão de mencionar Buxtehude, Häendel, Pachelbel, Rameau…
“Música barroca, você disse? Por aqui.”
O visitante contou que já havia encontrado o que procurava. O bibliotecário não pareceu convencido. Para encurtar a conversa, optando pelo mais simples, Júlio decidiu ir embora dali sem olhar para trás.
Não importa o que se faça de insano, alguém sempre corre o risco de aparecer numa enciclopédia. Veja, por exemplo, o astrônomo J. J. L. de Lalande, entre tantos outros. (Todos os gênios e supostos gênios enfileirados seriam incontáveis, inflacionariam, decairiam de valor. Ou juntos povoariam uma cidade e se enfrentariam no trânsito com palavrões. É preciso citar um por vez, para manter-lhes a boa forma.) Tendo ou não sido professor de astronomia no College de France, nomeado diretor do Observatoire de Paris, tendo ou não completado seu ambicioso catálogo no qual se cravavam quarenta e sete milhões de estrelas, só o que restou dele: um nome de aspecto infantil e um retrato padronizado que talvez não reproduzisse fielmente seu rosto, que não é ele. Uma ideia, no máximo. “Não”, dirá alguém. “Serviu inclusive para fazer com que você, dentre os céticos, questionasse tais valores, refletisse sobre ele, o astrônomo, e o recordasse, assim incluindo algo de seu nome, vida e obra aqui, em seu relato, como faz agora.” Sim, aceito. Grande consolo. Talvez por isso não haja nada numa enciclopédia ou numa biblioteca que me interesse muito. Não que não me interesse, claro. Tanto que acabei de dizer: não me interessa muito.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
69. A eterna tolice de tentar – sequência
67. Coisas não tão graves – anterior
Imagem: Henry Raeburn. Retrato de Sir Walter Scott. 1822.
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