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O Morro dos Lobos
Na vila, todo mundo o conhece: o Quim da fazenda. Quim Bento, o bobão.
Ninguém ficava imune ao sorriso em viés, aos desastrados acenos de braços curtos.
Outro sobrevivente do massacre dos pioneiros. Do tempo em que eu, tolamente, acreditava poder ser um novo Guimarães Rosa. Mas não pode haver outro Guimarães Rosa. Nem outro Machado de Assis. Nem há outro Graciliano Ramos. Esses artistas da palavra perderam a chave dentro de si mesmos.
Há alguma influência temática de John Steinbeck e também das imagens que me inspirava a canção The fool on the hill, de Lennon e McCartney.
Joaquim Bento era um nome que nem ninguém, nem ele, sabia de onde. Então, ficou só Quim.
Sem pai, sem mãe, nada de irmão nem cachorro em sarna de atrás ir em seu encalço, era que foi criado em severa austeridade na fazenda do Rogério Ruim, que era coronel de redondezas e tinha olhos vermelhos de saltadas veias. Pois tratou o temido patrão foi de cultivar proveito em cima dele – sendo que era o Quim atourado a músculo, de se fazer pesados serviços – e morreu de repente quando ele beirava, sem saber, por perto de 15 anos.
Vieram outros donos, de menos cruéis comportados, e Quim depressa e fácil ganhou de conquistar esse novo mais a sua patroa com aquele seu sorriso torto de basbaque. Nessa vez primeira que ele ouviu falares de bem e amáveis, maravilhou-se feito emocionado de tal descoberta, poder ser tratado assim por um ser humano de verdade, mesmo nada não dizendo.
Que não dizia: era mudo. De berço, de sempre. Só fazia era arremeter grunhidos indecifráveis. Por outro lado era que imitava fazendo pássaros e bichos do mato, quando com espantosa perfeição. De paixão com tudo que era forma viva, não escassas vezes era presa atenciosa de algum miúdo colorido inseto, a observar dele os moveres, até que o perdesse de vez nalgum buraco ou fresta de raiz. Capivara chumbada já recebera dele precários curativos. Cachorros-do-mato, preás assustados e até jaguatiricas vesgas tinham comido de própria mão quando longe de outras gentes. Aves inadestráveis até, se chamadas à linguagem dele, vinham pousar sobre seu dedo por nada.
“Esse moço deve de ser algum tipo de santo.”
“Casca, mulher. Ele sabe é bem de lidar com os bichos, digo só.”
Na vila, todo mundo o conhece: o Quim da fazenda. Quim Bento, o bobão. Ninguém ficava imune ao sorriso em viés, aos desastrados acenos de braços curtos. E com isso era que ele ia em diante, dividido entre seus muitos amigos, debaixo do sol das ruas poucas, o gingado de réprobo.
“Coitado do Quim…”
Passava pela barbearia, parava. Era tanta gaiola dependurada do lado de fora, mais as samambaias. O pássaro-preto já o conhece e entrega a cabecinha arrepiada ao dedo áspero do Quim.
“Aquele um da manchinha no peito ficou uma noite perto do tanque, e o gato pegou.”
Com isso, Quim baixava os olhos grandes, feito tristes de lagartixa, e à custa de murmúrios desarticulados contava manifestar seus sentimentos de perda. O homem da venda era quem melhor compreendia seus pedidos encomendados a ordem. Deixava sempre que ele escolhesse um doce feito, por conta da casa.
“Sarou o pato da dona Dores?”
Um sorriso entusiasmado, torto, era a resposta. Então desfiava, do jeito que só dele, toda a história detalhada do pato adiado e de como o havia tornado ao antigo estado de saúde.
O morredouro do sol, de últimas escuras claridades, encontrava Quim Bento parado, parvo, à janela de madeira do alojamento, tomado de fascínio pelas tantas variações de matizes. Bem à frente e a distância, via-se o Morro dos Lobos, com suas formas acidentadas e familiares contornos, carente de alumiação, sendo em terra tudo negro e, logo e manso, a confusão de estrelas muitas em começar de suas viagens noite dentro.
Morro dos Lobos, mesmo que por perto nunca se houvesse visto desses animais. Nascia colina de relva nas sapatas para então crescer em pedregulhos e mais e mais ressequido até seu pico hostil, abrupto, sem ervas. Quim conhecia de habituado as trilhas e os cortados barrancos que eram o morro, de vadiagens por dias de folga, seus de direito. Mas nunca havia reparado por lá bicho a lobo semelhante nem que outros mais, fora furtivos lagartos velozes que se enfiavam a desaparecer nos orifícios das pedras.
Pois um dia foi que, em visita à vila, Quim Bento sem saber impôs curvas ao próprio destino, contados desde então seus dias na fazenda, marco das histórias adiante passadas e que houveram de fazer dele criatura lendária.
Que era a filha do doutor dentista, homem com a família mudado há pouco, oriundo de cidade municipada, jovem meio adolescente crescida, de lindezas tais a fazer susto e quedar atento homem cidadão qualquer, toda a vila se admitia admirada. Entrando em casa sem se perceber observada, cabelos despenteados forjando curva no ar, essa imagem fugidia e avulsa apôs-se gravada na memória oblíqua do palermão, retrato vivo. E eram dela os passos, o último torcer de cintura antes de a porta trancar-se. E ele sentiu escapar-lhe um bicho novo de acariciar-se em encantos.
No dia seguinte, retornou à vila. Passou apressado pelos amigos seus, barbeiro e comerciante, e logo entrando pela rua de seu pouco, pequeno sonho. Ali esperou muito e tanto na calçada em frente, mas o quadro não houve de se repetir. Só uns feito passantes estranharam com piedade a estupidez de Quim Bento, imóvel de estátua, saltados os olhos tristes, o queixo pendente.
Repentes de surpresos espantos causaram os rumores muito rápidos do crime violento que então vitimou, trágica morte brutal, a tão bonita filha do dentista. Alguém falou de ter visto o bobo da fazenda em frente à esquina cuja, isso no dia anterior ao crime.
“Olhava dum jeito esquisito. Então não vi mais, que fui’mbora.”
De opinião em opinião, outras e tantas, que todo mundo se aventurava.
“Não quer saber? Faz tempo é que eu acho que aquele louco devia estar levado a hospício de cidade, que é um perigo ele solto andando por aí.”
Tanto que uns pagam que foi, gentes acham que não.
“Que que é isso! O Quim Bobo não pratica de causar mal a uma mosca.”
“Mas é louco, compadre. É louco, digo.”
Todos na vila já feitos de se conhecerem bem, não sobrava de escolher outro alguém possível e, em tempo escasso e pouco, todos chegavam a conclusões de fins.
“Pega o assassino!”
“Pega o louco da fazenda!”
As vozes todas reivindicavam justiça.
“Seu doutor delegado! Eles vão atrás do Quim da fazenda!”
Juntaram-se feito a cruzadas de vingança os homens adultos, empunhados de facões de ponta e espingardas de caçadas mais os moleques no enrabichado, equipados com estilingues, paus e pedras, feito a caçarem pássaros ignorados. O delegado, homem baixo, mirrado, deu dois tiros para cima, de furar céus: “Para todo mundo, em nome da lei! Ninguém dos aqui presentes tem provas. Pois que ninguém se atreva!”.
“Bobagem, doutor delegado. Todo mundo sabe que foi ele. Louco é que não podia andar solto, livre feito cidadão de bem. E mais, o senhor não pode levar todo mundo preso. Nós queremos mas é justiça, isto assim digo!”
As gentes, em multidão dispostas, reagiram a esses últimos dizeres, e braços confiantes ergueram punhos cerrados. Nisso, o vigário reavivou em voz alta que a ira de Deus justo haveria de recair sobre qualquer que tocasse de relar dedo em Quim Bento.
“E se ele for inocente? Quem dentre vocês vai responder perante Deus por mais um crime?”
“Deus não faz gosto é de assassino, padre”, arrematou um dos armados.
Com argumentos no apoiar de ideias já no fixo e exato, partiu da vila a marcha feito horda de justiceiros em direção à fazenda.
O patrão de Quim, desentendido, apertou olhos de logo dar por percebida a hostilidade dos que se aproximavam.
“A gente nada não quer com o senhor. Entrega ele sem mais muitos discutires e fica tudo em paz.”
Mas nisso de uns falando e outros, o Quim deu de fugir-se pelos fundos dos alojamentos, por sua vez suspeitando terríveis sucederes.
“Olha que é ele lá!”, apontou um menino mais esperto, a primeiro ver.
“Ninguém não atira, gente! Vamos pegar vivo.”
Quim disparado feito animal de casco, deslocado dentre o descampado fora, não dava acenos de alguém encurtar-lhe vantagem.
“Pega! Cata!”
“Pega o louco assassino!”
Desde o céu subido no horizonte, um cinzento de tempestade vinha de se adensar no dia já de sol escasso, enquanto a figura veloz e distante de Quim Bento perdia contornos em direção ao Morro dos Lobos. De bem conhecer reentrâncias e covas foi que ele escalou a trancos imediatos, firmes, todas as pedras possíveis de pisar, até nos pertos do pico alocar-se em rasgo de esconderijo, ensombrado de grande rocha derradeira, feito escudo e teto, de onde subir não dava de se fazer mais. Ali, ele murmurou uns choros desesperados, miúdos, de nada entender. Logo mais abaixo, as vozes todas vociferavam de morte.
Nisso, Quim relembrou num relance a imagenzinha de bonita moça, santa padroeira, cultivada em nicho tosco do alojamento, bonita que queria ser filho dela. Mas, ai: quanta era a beleza dela que ele nem não tinha! Pequeno de si, viu-se de não ser digno de auxílios tais de tão importante figura celestial. Olhou as mãos grossas, ásperas de pele, cascos, e filho de Nosso Senhor tinha era as mãos assim de bicho, tudo feito diferente e feio? Mais isso de vergonha, Quim chorou baixinho de não ser filho de nada. Mas que pai e mãe deviam de ter razão em enjeitá-lo novo de nascido, que pai e mãe, feito o povo da vila fala em sempre, devem de ser respeitados, que são pai e mãe de serem, e que Deus os desse de alumiar quer onde andassem.
Nisso foi que terríveis formas de nuvens medonhas se achegaram mais perto, em tempestade acercada do cume. Pedra mais voz de gente trovejando, vindas de baixo, a clamar por seu sangue. E pedra mais homem são da mesma lei em força, nem não chegando reza ou magia contra quando tudo está junto.
Inesperado e rápido foi que, soprando alto do nordeste, bateu de crescendo em crescendo o vento em grandes patadas, lufado em golpes, a último degrau do massacrar requerido. E fez dificultar a marcha dos carrascos, arrebatando-lhes equilíbrio em lambadas, aos cujos fustigando e açoitando sem nenhum dó, deitando-os por mais forte, feito lagartos agarrados em rochas. A argamassas cor de cobre assemelhadas, as nuvens, tais como sujas, fundiram-se com violência junto ao pico do qual Quim já era tão perto. E então, que era que a noite também vinha, desabou a chuva oblíqua sobre os homens, repentina, torrencial de querer tragar monte e pedra e encostas e tudo, com fome de coração de gente humana.
Curvado de terror, Quim resguardava-se atrás da última rocha. As costas arcadas, sozinho no meio do inferno, feito feto outra vez encolhido, na sombra interior do útero de pedra.
A tormenta desmanchou a feita turba, pondo tudo a recuar encosta abaixo, de tropa e tropeção, que era o rebanho obscuro, perdido e cego no caos de surpresa, a correr sob clarão de relâmpago azul já faiscante e trovejante em breve, de abalar alicerces da terra. E quem tornasse a olhar para cima, ao topo de rocha, já não via senão tudo encoberto pela vasta neblina escura.
A vila, emoldurada em lama da chuva da noite dentro, só viu do sol após o seu a pino. E aí se dava de tornar a perguntarem-se do Quim, se coisa feito vinda de Deus ou do Diabo teria baixado a buscar o cujo.
Mas nem o Quim nem carcaça dele se houve de encontrar mais. Após muitos dias da borrasca, gentes subiram morro mais vasculharam região acerca de terras próximas. Que não tinha era mais nada, que não havia. Nem a justiça das gentes tinha alcançado os pés de bicho, Quim desaparecido. Pedra nenhuma houve de causar-lhe morte. Tinha era se esfumado, dissolvido no vento nordeste, aspirado e espírito, devorado pelo escuro à luz de relâmpago, Quim Bento, que Deus e o Diabo não conheciam de auxiliar, filho e de pacto com os bichos da terra e com as nuvens da noite, nuvens cujas que as gentes nem não sabem.
Inconsistência dos retratos – Guia de leitura
26. Peter Pan na toalha – anterior
28. Constanza – posterior
Imagem: Bernard Queally. Da coleção New Ground.
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