Office in a Small City por Edward Hopper

Os retratos de Marta Rosana

A sociedade, penso eu (mas não lhe digo), é basicamente formada pelos que se salvaram, inclusive da miséria.
Os outros (que outros?) não provarão da aventura humana.

Vamos entrar vamos entrar, diz o velho com certa impaciência. A onda aromática invade-me as narinas. Móveis antigos, o mofo das cortinas e o próprio velho causam-me certa náusea momentânea. A sala, não mais que um cubo fechado em outra realidade, a casa toda velha e o passado que existia. Vamos sentar, diz, aqui mesmo ali não faz diferença, e repete, não faz diferença. Manca até a estante, volta com o que lembra um livro de capa marrom e reluzente. Como combinamos, fala. Tomo-lhe das mãos esse estranho livro, seguro-o entre as minhas, emocionado. A capa imita madeira envernizada. Eu sabia, murmura de olhos inquietos, que você iria gostar então não vai abrir? Certamente. Mas vivo ainda a embriaguez desse momento em que tenho nas mãos o que, me parece, há de mais importante no mundo. Eu mesmo fiz tudo, explica, são todas as fotos todas em que ela aparece de alguma forma em ordem cronológica como a própria vida está tudo aí dentro uma vida inteira fechada aí eu mesmo fiz tudo. Pergunto-lhe se foi difícil. Não tanto montar o álbum mas conseguir as fotos a família estava em estado de choque eu sabia o lugar de cada objeto naquela casa quando derem pela falta não se lembrarão mais de mim que durante tantos anos fui pessoa de inteira confiança muitos anos mesmo quanto a você nem imaginam. Só ela sabia, digo. Só ela, repete, agora ninguém por isso estou ajudando rapaz porque sei que você merece essas fotos mais do que qualquer outro por isso estou ajudando porque sei. Obrigado. Sentimentos da família? famílias são sempre famílias uma paixão como a sua uma paixão assim como a sua só acontece uma vez a cada geração famílias são sempre famílias. Tenho vergonha de haver-lhe confessado sentimentos muito íntimos a fim de persuadi-lo a conseguir as fotos, mas em tudo fui verdadeiro. Estranhamente, passo a suspeitar que todo sentimento exacerbado menos se assemelha à verdade que ao equívoco. Ocorrem-me dúvidas sobre a eternidade do amor que eu podia jurar, quando de fato o sentia. Meus caminhos oblíquos, não mais. Você rapaz mais do que ninguém merece ficar com ela. Com ela? Ela mesma ela está toda aí dentro ah uma paixão como a sua quem mais senão um homem apaixonado poderia ter escrito cartas tão envolventes era tanto calor tanta verdade. O senhor leu as… Eu sabia o lugar de cada objeto naquela casa não se preocupe sou um velho inofensivo e devo morrer logo. Ele leu (as mãos tremem) minhas confissões, palavras que eram só minhas e que lhe abrem minha alma como uma chave. Sinto enfraquecer. E as cartas? O que foi feito delas? Não sei, responde. Repete ainda o que disse sobre elas. Gostaria que todo homem alguma vez na vida tivesse uma paixão assim. O senhor não deve exagerar. Pois eu nunca li coisas tão bonitas isso é o que eu sei mas vamos vamos é melhor abrir e ver o resto vamos o resto. Viro a capa. Primeira página, ao centro:

MARTA ROSANA

Logo abaixo, duas datas entre parênteses. Ideia sua? Claro eu mesmo fiz tudo. Meus olhos tornam-se opacos. Marta e sua breve fatia de vida. Fotos dos primeiros aniversários. Melhor esquecer. Esquecer? Esquecer. Foi o que eu disse, não foi? Foi bem o que você disse esquecer nem sempre mais fácil do que lembrar por falar em lembrar aliás esquecer eu também tive uma grande paixão sabe muito tempo atrás isso não importa agora vá em frente. Detenho-me. Talvez seja melhor levar o álbum comigo, mas esse meu cúmplice me instiga a prosseguir ali mesmo. Viro a página com um gesto nervoso. Uma menina, uma criança como outra qualquer. Não ainda a Marta que conheci e amei. Aqui com a irmã mais velha. Sim, foi o que pensei. Depois dela a mãe tentou outro filho mas ele nasceu morto o pequeno estaria numa dessas fotos mas não chegou a existir existiu morto um pouco. A sociedade, penso eu, mas não digo, é basicamente formada pelos que se salvaram, inclusive da miséria. Os outros (que outros) não provarão da aventura humana nem terão chance de eternidade exceto como legião. Todo esse dinheiro deles… não foi bastante para comprar a vida, não é? Nem para evitar a morte rapaz. O que existe fica nos retratos, murmuro distraído. O que existe fica nos retratos rapaz. Um ancião naquela página. A imagem dele. O avô de Marta, conta. Tem os olhos cansados de quem já viu tudo nesta vida. Uma velha história rapaz quando se julga compreender o mundo já não se tem necessidade disso uma velha história observe a data a foto tirada pouco antes de ele falecer aos oitenta e seis anos. Tudo isso? Só isso rapaz só uma imagem para nós agora oitenta e seis anos que já não existem. Começo a entender que o velho criado não é apenas um pobre maníaco, mas um homem observador e amargo, a astúcia confundindo-se com a mente cansada. O tempo nos empresta idades mais tristes. Tantos vivem dia após outro com a felicidade de não perceberem a vida não são como eu morrem acreditando. E essa quem era? Uma dessas pessoas felizes tia dela. E isso é uma festa não? Uma festa uma bonita festa eu me lembro quando penso que… A vida é assim, tudo é assim, falo irritado, tudo acaba, é a vida afinal… Tudo mas nem sempre aceitamos isso. Perscruta-me os olhos, meus olhos de Marta. Não é? Sinto-me fraco outra vez. Peço desculpas, afinal é apenas um pobre solitário que me ajuda, que reuniu tudo o que restou dela, estas imagens. Pergunto-lhe ainda sobre os tipos que aparecem nos retratos, quero saber tudo e nunca mais estar ali. Rostos prestes a esvanecer-se como num sonho. Nossos rostos de outros. Condenados. Não o meu. Nunca. Outros rostos. A um homem que me parece justo chama canalha. Uma imagem me engana. Só o que há no mundo: imagens, silhuetas, sombras. Infância, fase adulta, maturidade, velhice, morte – isso jamais mudará. Não pergunto mais. A infinidade de casos que se entrelaçam nas tantas fotos serve apenas para reafirmar o eterno vazio que é haver a vida e seu transcurso, o mesquinho espetáculo do tempo combinado à fugacidade da tão frágil, desgastada natureza humana. Somos o passado o presente passa o passado fica você já reparou rapaz como estamos fechados no tempo agora mesmo podemos agir de uma maneira ou de outra mas no passado tudo concluído nada mais pode acontecer a vida de cada um fechada como num retrato você compreende compreende! como isso soa de uma forma terrível? Não respondo. Viro outra página, dissimulando meu silêncio. Gostaria de existir fora de mim examinar o tempo como um todo um único bloco onde estivessem contidos todos os acontecimentos um diabólico calidoscópio de dimensões não sei qual a finalidade disso o universo não precisa de mim nem que eu assista aos absurdos que o perpassam é só um desejo tolo que trago como todo desejo há de ser nada um dia quero esquecer mas simplesmente não posso que sou apenas mais um prisioneiro numa cela de tempo morto enquanto vivo pensar que já existe o lenho de meu caixão tanto quanto a cadeira em que você está sentado. Basta, eu lhe digo. À minha frente, as fotos. Marta já é uma jovem mulher, como a vi da última vez. Aqui está ela. As últimas fotos. O álbum se fecha, a capa imitando madeira. Marta. Uma vida em algumas páginas que se esgotam, assim termina outra vez. O ar me falta, é preciso sair o quanto antes, o que me espera? Sair do que somos! Tenho de ir agora, senhor, volto um dia com mais tempo. Ah sim com mais tempo rapaz. Obrigado por tudo sei que vou encontrar um meio de retribuir-lhe este favor. Eu faria tudo outra vez afinal uma paixão assim uma paixão como a sua… Minha mão magra de ser jovem, sua mão magra de ser velho encontram-se em algum ponto no ar, algum momento. A sala antiga, os retratos de Marta Rosana estrangulam-me. O que são estes momentos? Eu, enquanto os vivendo, não suspeito que já se soltam de mim e se fazem lembrança como outros. Adeus. Desço os degraus da porta. Atrás ficam o velho em sua cela, fora de meu mundo. Marta volta comigo. E todos os momentos são os de uma história que pode ser contada, pois já não existem.

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Imagem: Liu Mao Shan. Paisagem urbana 5.

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