Office in a Small City por Edward Hopper

Não foi tão ruim, mas foi ruim

Nós, gordos e magros. Gerações que se sucedem e se repetem. Gente entrando e saindo, gente sentada ou de pé.
Dançando, bebendo. Beijando-se. Desaparecendo. Todos mais ou menos semelhantes, o que absolutamente não serve de consolo.

Abriu a porta. Estava de preto. Maquiada, cabelos presos. Vestido curto, justo, fechado no peito até o pescoço, ombros nus, pernas envolvidas em meias de seda escuras, pés rígidos em sapatos de salto, também pretos. Um beijo. Júlio apalpou-lhe os ombros. Estava pronta. Aonde vamos? À discoteca.

Júlio lhe disse, o que ouvira de Coelho uma vez, que um dos trechos mais enfáticos do molto allegro, primeira parte da Sinfonia N°. 40 de Wolfgang A. Mozart, KV 550, era o que mais se parecia com a libertação. “A obra de Mozart é a obra de um paranoico”, dissera-lhe o contraditório Coelho. “O homem Mozart praticamente não viveu, foi arrastado por seu incontrolável potencial criador. Mais foi dominado pela música do que a dominou. A posteridade agradece a esse infeliz. Essa grande vítima da maldição da arte.” Cada um desses loucos, pensava Júlio, deve ter sido de certa forma como eu, em busca de algo que não pudesse reprimir, mas que lhe respondesse à vida. Porém, Bruno arrematou dizendo-lhe que já estava acostumado às suas manias, que ele não precisava especificar a tralha toda para confirmar que era um chato, e o arrastou assim mesmo à discoteca.

Não foi tão ruim, mas foi ruim. Um lugar infestado de gente, incômodo, ruidoso, mas todos pagavam para estar ali, acredite.

Perdeu Bruno para uma espécie de jovem medusa, cabelos desgrenhados e exuberantes, corpo convidativo, que o chamara à pista pouco depois de eles haverem chegado. Júlio atravessou como pôde uma massa de pessoas que exalavam todo tipo de aromas, odores e fedores. Foi até o guichezinho estreito onde uma quarentona antipática vendia fichas. De lá, conseguiu chegar a uma bancada minúscula na qual um sócio grosseiro recolhia as mesmas fichas, batendo-as com violência sobre a madeira. Por fim, alcançou o balcãozinho ridículo, de onde um empregado aborrecido empurrava as bebidas aos consumidores alucinados. Um fantástico golpe de sorte deu-lhe uma vaga no sofá inteiriço que se estendia por trás das mesinhas fixas e fechava três partes do quadrilátero da pista. Júlio ficou olhando o jogo de luzes alternadas, o teto de espelhos, as lanternas giratórias, truques que davam a impressão de reter ou retardar os movimentos entre focos faiscantes, à custa de alterações na frequência das direcionais, tudo isso associado à poderosa combinação de sons graves que eram o fundo da música, contrabaixo e bateria, fazendo vibrar as paredes, como se um coração gigantesco, de ritmo indomável, pulsasse por trás delas. Entre os que dançavam, um loirinho de borracha, endiabrado e incansável, atraía a atenção dos outros. Era notável que quisesse dançar tanto. Quanto a Júlio, detinha-o uma gordinha descontraída, irradiando simpatia, que só perdeu de vista três vodcas depois. Outra, também atraente, esbelta. Parecia mais magra, sob outra luz. Magra mesmo. As luzes, claro. Podia ser que emagrecesse mais do que aquilo um dia. Talvez se tornasse uma velha ossuda e feia, com aquele nariz esguio. Difícil pensar assim, mas o tempo… Todos ali haveriam de emagrecer bastante, sem dúvida. Nem era intenção tocar no assunto. Tudo porque perdera a gordinha de vista. Nós, gordos e magros, pensou. Gerações que se sucedem e se repetem. Gente entrando e saindo, gente sentada ou de pé. Dançando, bebendo. Beijando-se. Desaparecendo. Todos mais ou menos semelhantes, o que absolutamente não serve de consolo. No momento, uns tipos se destacam, como o loirinho de borracha. Júlio imaginava que ele tivesse muitos irmãos espalhados por toda parte, e se alguém entrasse em qualquer discoteca do mundo, encontraria um desses dançando como um possesso. A gordinha também é um tipo. Bruno. A medusa. Eu. Nunca se escapa a ser um tipo. Bêbado ou drogado, seu vizinho de sofá parecia dormir em meio ao frenesi de ruídos e luzes. Cabeça tombada de lado, morto. Talvez fosse uma pessoa de bom gosto. Morrera de tédio. KV 550, a libertação. Precisava de outra vodca. Enfrentou a espessa multidão, menos paciente, mais oprimido. Perto dele, uma garota tropeçou, pendurou-se em seu pescoço, olhava os próprios pés, buscando a causa de seu desequilíbrio. Estava muito bêbada e sorria. Obrigada. Não seja por isso. É impossível cair em meio a tanta gente, não acha? Beijá-lo? Vá lá. Foi bom. Por que não? Só não entendo por que precisamos de todas essas coisas chatas para compensar alguns minutos de coisas boas. O sexo mesmo, alguns minutos. Tempo psicológico. Parece que vamos usar a noite toda. Cinco, sete, dez minutos e… Não bebi muito, sei disso. O ar se tornava mais denso, viciado. Blocos de fumaça trespassados pelo foco das direcionais. No sofá, o cadáver roncava. Boca aberta, cabeça caída para trás. Ninguém vai tirar esse cara daí? Onde estarão seus amigos? Amigos são assim mesmo. Falando em Bruno, não o via há séculos. Horas. Vodcas. Desapareceu. Enfeitiçado pela medusa, é compreensível. Sorte de ter ficado com a chave. Não encontraria o sacana antes do meio-dia seguinte.

Tudo isso num ritmo alucinado, para se aproveitar a palavra, poucos segundos, tendo à frente a careta chorosa e suplicante de Vanda, os lábios movendo-se sem voz, tentando convencê-lo ainda.

“Nem está me ouvindo, o viado!”

“Escolhe outro lugar. Qualquer lugar.”

“Por que não?”

“Não quero estar confinado, prensado, sufocado. Quero respirar o que me faça sentir mais livre. Além disso… Você está tão bonita.”

“Ah…”, ela subitamente calma, logo após um instante mínimo de surpresa. “Bom, se é assim…”

Beijo apaixonado, quem diria. KV 550, molto allegro. Vencemos, Vanda.

Sim, antes que o tempo escorregue por nossos dedos. Antes que seja mais tarde do que imaginamos.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

57. Vanda vence a água e as nuvens – sequência

55. Testamento entre suas últimas manias – anterior

Imagem: Fiona Rae. Sem título. 1996.

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