Office in a Small City por Edward Hopper

Testamento entre suas últimas manias

Da última vez que estivera em seu apartamento, Júlio guardara a sinistra impressão de que os móveis, as coisas estavam todas no lugar como se há muito tempo ninguém morasse ali.
A ordem especial que era a própria imagem do abandono, a ordem cheia de presságios de quem, absurdamente, esperava morrer.

Não importa que tudo seja contado em sequência, pois tudo ocupará de alguma forma o espaço da memória, onde o jogo maior é justamente perder-se da sequência.

“Tenho rezado muito”, Dona Norma ao seu lado no hospital, certa de lhe estar transmitindo grandes porções de confiança. “Tenho certeza de que o senhor vai sair daqui antes da Páscoa.”

Coelho morreu na Páscoa. Perto da Páscoa, o que parecia pouco importante. Ele próprio já o previra com certo alívio, a convicção de que o evento estivesse próximo, e dissera aos rapazes ainda no hospital: “Isso que lhes ensinaram, de que os que morrem na Páscoa ressuscitam, é pura conversa, os senhores fiquem sabendo. Não se deixem enganar com histórias de coelhinhos crucificados, só o que eles querem é atingir suas fraquezas. Eu, agora, na Páscoa, vejam os senhores, isto sim, outra grande piada do mundo… Vamos, não fiquem tristes, eis meu ridículo conselho, por fim.”.

Dona Norma ouvira o som de um corpo caindo durante a noite e fora chamar os rapazes. Encontraram Coelho desfalecido, a um canto da sala, entre garrafas vazias e fragmentos de um copo que lhe teria escapado das mãos.

“Ele devia sofrer de cirrose há algum tempo. É estranho que nunca tenha dito nada. Vocês são vizinhos, pelo que entendi.”

“Amigos”, Bruno ao médico de plantão.

Foram vê-lo no dia seguinte. Dona Norma estava lá.

“Ah, os rapazes…”, Coelho com voz ligeiramente alterada. “Ah, os senhores não sabem como é bom saber que estou ficando livre da vida.”

Dona Norma o desprezou com um gesto.

“Nem quando está doente o senhor melhora dessas maluquices.”

Bruno entrou na conversa.

“O senhor vai tomar muitas quando sair daqui.”

“Não, senhor Bruno. Não, por sorte não. Chegou a hora de não sair. De não voltar. A vocês, que são meus amigos, vou confessar uma coisa: a vida toda eu quis morrer.”

Seu advogado organizou o funeral mais simples a que cada um deles havia assistido. Num esquife sem qualquer ornamento, o corpo foi conduzido diretamente do necrotério a uma cova rasa, sem lápide nem inscrição, de acordo com o desejo desse último Coelho, finalmente isolado de um mundo onde, na verdade, nunca teria podido viver, agora desaparecendo sob as primeiras porções de terra que um homem enrugado deixava cair de uma pá. Dona Norma era a única que chorava.

Júlio chegou a sentir uma vaga nostalgia das tardes em que o visitavam, como se tais encontros, tão recentes, já se mostrassem muito distantes. Das noites em que particularmente ele lhe mostrara os trabalhos da fase chuvosa de Mozart e os azulejos com a régua de Mondrian, sempre os chamados opostos de intuição e razão, seus embates e estranhos resultados. Voltavam-lhe algumas frases e sua continuidade nos diálogos, de certa forma acreditava ter aprendido algo novo, fosse semelhante a uma visão singular das coisas, além das curiosas informações e observações com que Coelho os brindava, como, por exemplo, referindo-se a “Chopin”, do Carnaval de Schumann, como “mais um diamante”, definição que dificilmente se daria em qualquer texto formal sobre música. Agora ocorria a Júlio, influenciado por tais lembranças, que Coelho talvez buscasse, a seu modo, como Paul Dukas, um ideal acima de suas forças.

Da última vez que estivera em seu apartamento, Júlio guardara a sinistra impressão de que os móveis, as coisas estavam todas no lugar, como se há muito tempo ninguém morasse ali. A sala, nua de quadros ou de quaisquer objetos de natureza decorativa, exceto por um cinzeiro de cerâmica na mesinha ao lado da poltrona, tudo em ordem como para ser deixado, a ordem especial que era a própria imagem do abandono, a ordem cheia de presságios de quem, absurdamente, esperava morrer.

“Um de nossos problemas é que vivemos demais”, ele e um de seus exercícios de retórica. “E vivemos fazendo contas de tudo. Ora, por que fazer contas? Vejam o meu caso. Levei cinquenta e seis anos, dois meses e dezessete dias para compreender que o tempo não pode ser medido.”

“O senhor dizia cinquenta e dois…”

“Eu dizia?”

Coelho havia feito um levantamento de seus poucos bens, um telefone e o saldo de uma aplicação bancária. Em função disso, redigira um testamento simplificado legando tudo o que possuía a dois sobrinhos distantes. Deixara-o em mãos de um advogado que conhecera por acaso e que lhe ouvira, com grande paciência profissional, as derradeiras vontades. O homem prometera ser fiel ao cumprimento de suas últimas manias e perguntara-lhe ainda se era tudo o que tinha a declarar.

“Só mais uma coisa”, ele com certa formalidade. “Por favor, não morra antes de mim.”

“O senhor é o homem mais ateu que conheço”, Dona Norma quase alegre com as esquisitices dele.

“Minha querida, Deus gosta mesmo é dos ateus, que não ficam incomodando com pedidos, orações… Aliás, eu e seu deus mantemos um acordo velado e muito vantajoso. Não peço nada, em troca nada se exige de mim. Assim, damo-nos mútua liberdade. Faz parte do equilíbrio universal.”

“Essa não! O senhor disse a mesma coisa na semana passada, quando falava de filhos.”

“Isso também, minha cara. Do equilíbrio demográfico, para ser bastante simplista. Nada me convence a deixar alguém para usufruir deste mundo nojento.”

“Vá, vá… O mundo não é sempre nojento.”

“É sim. Inclusive nos feriados.”

“Imagine! Que seria do mundo se ninguém mais quisesse ter filhos, se todos pensassem como o senhor…”

“Se todos pensassem como eu?”, outro breve sorriso, carregado de singularidade. “Durma tranquila, minha senhora. Esse é um risco que nós não corremos.”

Agora, não mais lhe falta o tempo. Tornou-se outra memória, podendo ser falseada por nossos relatos. A minha história acontece enquanto a descrevo. O tempo passou, por isso as coisas não existem mais. O passado aconteceu. Agora já posso inventá-lo. Ora, por que me estenderia, se ele próprio ensinou-me a abominar qualquer sintoma de pretensa dramaticidade? Mas, confesso, fiquei pensando em algo que ele disse certa vez sobre ser bela e terrível a obra de um autêntico feiticeiro. Ele se referia a um músico, não me lembro qual. Isso me fez pensar que não deveríamos propriamente procurar a felicidade. Mas conhecer tanto quanto possível sobre nosso estoque disponível de emoções, em todas as suas variantes. Coelho também me parecia belo e terrível. Não construiu nenhuma obra, apenas se expressou oralmente, enquanto quis. Depois me lembrei de que teria sido esse também o caso de alguns pensadores do passado. Nem todos escreveram de fato. E nos alcançaram através de outros. E tantos, como eu, escreveram por nada, imagine. Por fim, algo se aproveita de um personagem avulso, não é? Ora, como não?

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

56. Não foi tão ruim, mas foi ruim – sequência

54. Vanda pela manhã – anterior

Imagem: John Frederick Peto. Natureza-morta com livros e tinteiro. 1899.

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