Office in a Small City por Edward Hopper

Relógios

Sobre a mesa tosca, os mecanismos desmontados aguardavam a vez de viver novamente.
Numa estante de vidro, uns relógios recuperados sorriam horas exatas.

Este foi meu primeiro conto publicado em livro, aos 21 anos, por meio de um concurso literário. Dá para sentir o amadorismo, a ingenuidade, a linguagem convencional, pretendendo ser a melhor possível. Na época, pensei que fosse escrever mais alguns destes e não muito mais que me gratificasse ou me animasse além disso. Algo por aí, no limite de minha preguiça mental, enquanto rabiscava uns poemas. Mas escrever ficção acabou se tornando uma paixão permanente.

Tudo parecia estar dando errado. O carro enguiçara pela manhã, atrasando-me duas horas no trabalho, horas valiosas que teriam de ser repostas para meu próprio bem, para que meu serviço não se tornasse uma dor de cabeça ainda maior.

Cerca de cinco da tarde, o escritório em pleno alvoroço de um expediente na metrópole, e eu não conseguira ainda deixar as coisas em ordem. Dezenas de máquinas de escrever produziam sons simultâneos, como metralhadoras. Pessoas passando umas pelas outras, urgências lembrando uma guerra, de certa forma uma pequena guerra de rotina, a eterna competição entre os homens – e quando não disputam entre si, estão ocupados combatendo na guerra contra os números, contra as máquinas, contra processos que desafiam sua inteligência, enfim, um clima que põe os nervos de um homem já perturbado num estado arrasador.

Era o meu caso.

“Você errou outra vez estas numerações”, advertiu meu supervisor, devolvendo alguns papéis à minha mesa.

“Eu vou corrigir…”

“Não, faça outras fichas. Essas rasuras ficam horríveis.”

Fez uma careta e virou-se. Já não bastava meu atraso, e ainda apareciam sujeitos como aquele.

Ligeiras pontadas em um dos molares, lembrando-me de que há muito não procurava o dentista. Minha camisa predileta, manchada com uma tinta de carimbos pela qual eu nutria um ódio homicida. E, claro: quando meu relógio parou, tive ímpetos de atirá-lo pela janela, salvando-o no último segundo – quem sabe ainda um sintoma de que poderia salvar-me também.

“Maldita droga!”

Sabia que não poderia confiar em quinquilharias contrabandeadas, mas sabia também que não viveria sem ele, pois tudo o que fazia em minha vida era baseado em seus ponteiros, antes precisos.

Caminhando pelo centro da cidade, avistei, entre outras, uma placa no meio do quarteirão: RELOJOEIRO. Dizeres menores aos quais não dei atenção. Deparei com uma pequena entrada, nada atraente. Um antigo sobrado entre dois prédios de última linhagem, uma dessas fachadas obscuras que parecem só existir em ilustrações a bico de pena ou em sonhos imprecisos, e passam despercebidas ao caos urbano. Apesar da pressa, hesitei entre procurar algo lá dentro, quando havia relojoarias com serviço garantido em cada esquina. Mas algo em mim reclamava um ambiente sombrio como aquele.

No fim do corredor, uma escada de madeira levou-me ao primeiro andar, rangendo e estalando conforme eu pisava um ou outro degrau. A luz vinha de uma porta à esquerda. Meus passos transformaram-se, para minha surpresa, e eu entrei silenciosamente na pequena oficina.

Ali trabalhava um homem semicalvo, debruçado sobre um minúsculo relógio, à luz de uma luminária direcional. Parecia muito concentrado, e não percebeu minha chegada. Aproximei-me do balcão e, intencionalmente, provoquei um ruído que alertasse o relojoeiro. Ele levantou a cabeça, sorriu ao ver-me – rugas que pareciam sorrir. Falei-lhe de meu relógio. Contei-lhe apenas que ele havia parado, só isso, na falta de palavras melhores. Ele meneava a cabeça, seguro de conhecer o defeito.

“É um conserto bastante simples”, disse educadamente. “Se puder esperar, eu o apronto agora.”

Concordei em esperar, e ele, voltando ao fundo da oficina, murmurou o nome de algumas peças antes de se alojar novamente sob a luz.

Só então, em minha conturbada rotina de ocupações, pude esvaziar a cabeça por uns minutos, dirigindo minha atenção à pequena oficina mal disfarçada entre gigantes de concreto. Um aroma agradável de madeira penetrava o peito, provocando uma espécie de puro prazer, alguma embriaguez nostálgica e envolvente – eu o inspirava deliciado, como provando de um vinho raro. Cada móvel e objeto pareciam em seu lugar, uma estranha e inusitada harmonia. Sobre a mesa tosca, os mecanismos desmontados aguardavam a vez de viver novamente. Em uma estante de vidro, uns relógios recuperados sorriam horas exatas. Os mais antigos, de parede, pareciam observar-me com suspeita. Todos eles, filhos das mãos habilidosas às quais se submetiam para renascer. Eram poucos os objetos modernos. Em minha mente perturbada, os móveis pareciam felizes. Felizes com seu destino anônimo, valorizados por seu dono, e tudo ali parecia fazer parte dele, do velho relojoeiro, uma espécie de projeção material do que sua personalidade teria construído aos poucos, ao longo da vida. Vi como ele desmontava cuidadosamente meu relógio, interessado em seu mecanismo, e eu, vendo-o assim, pensei por um instante que o mundo era diferente para cada pessoa. No mundo burocrático do qual eu vinha, uma cena como aquela não tinha maior importância, e ridículo seria mencioná-la. No seu mundo de relógios, com ritmo próprio, engraçado seria ver-me correndo atrás de alguns papéis. Mas, de alguma maneira, nos completávamos e, interagindo entre uma infinidade de mundinhos, formávamos um vasto sistema, um vasto mecanismo no qual nem sempre as coisas estavam certas. O que seria de mim sem meu relógio, e de meu relógio sem ele? Que seria dele sem homens como eu, com relógios por consertar? Cada um de nós, uma peça indispensável, talvez, apesar de minúscula, parte de tudo o que gira ao redor, imperfeitamente engrenado no tempo e no espaço, enquanto o planeta desloca sua massa pelo infinito, um imenso relógio que nunca se quebra, e nunca se cansa, e nunca termina.

Despertando-me de minhas filosofias baratas, o homem voltou ao balcão com o relógio montado.

“Foi muito simples”, explicou.

Deu-me alguns detalhes técnicos que fingi estar entendendo. Mesmo com tantos anos de profissão, o velho ainda se entusiasmava com essas pequenas coisas. Por fim, cobrou-me uma quantia irrisória, levando-se em conta o papel que as horas representavam em minha vida.

Parece que tudo acabou aí, mas, não sei por que razão, eu quis ficar um pouco mais, respirar o ar antigo, sentir meu corpo presente naquele lugar, entre móveis e peças que eu não conhecia, como num sonho. Tinha necessidade de ficar, fugir ao meu mundo por algum tempo, conhecer um pouco mais daquele outro.

Perguntei-lhe, a pretexto de prolongar meu prazo, se há muito trabalhava ali, naquela sua oficina. Ele respondeu que sim, e não sabia fazer outra coisa senão consertar relógios. Também era justamente o que queria fazer. Ele parecia disposto a conversar, mas, ainda que eu me esforçasse, os ponteiros de meu mundo já me obrigavam a voltar.

Desci as escadas, pensando nos problemas que me aguardavam no serviço e fora dele. Meu relógio, agora consertado, mostrava-me seus minutos preciosos, seu tempo que era o meu e que voava, pondo-me a correr novamente, atrás de meus compromissos inadiáveis. Desesperei-me com a volta à guerra. O tempo que eu vivera na velha oficina servira-me de trégua, momentos de cristalina lucidez que, eu já suspeitava, haveriam de ficar para sempre.

A atmosfera, a estranha magia dos objetos e o sorriso do velho relojoeiro voltavam-me com frequência, como qualquer acontecimento muito importante. E tinha sido. Não propriamente a visita à oficina, mas a inegável metamorfose mal delineada em minha visão mecânica das coisas. Não podia mais encarar meu pequeno mundo como antes era meu natural. Enquanto tantos se esbarravam e se atropelavam na cidade aqui fora, o velho relojoeiro conservava intacto seu universo de criaturas enfermas, carentes de seus cuidados.

Tomado pelo desejo de passar em frente à entrada da oficina, observar de longe suas escuras entranhas, imaginar o velho lá dentro, com ele a certeza de vida ao fim da escada de madeira, deliciar-me com a visão do pequeno sobrado e assim saciar minha estranha necessidade, consegui algum tempo em meu intervalo, e apressei-me a dobrar esquinas que me guiassem à realização desse meu modesto sonho.

Não avistei a placa que me havia alertado da primeira vez. Nem a entrada. Nem o sobrado. Um grande vazio. Um estreito terreno em fase de terraplenagem, sendo trabalhado ruidosamente por uma monstruosa retroescavadeira. O homem da loja em frente não sabia para onde se transferira o velho relojoeiro; confessou-me, afinal, que nem mesmo o conhecera.

Misturado à multidão, retomei minhas conhecidas fronteiras, um pouco aturdido, mas sorrindo em silêncio: havia mais da vida a ser explorado, e o velho dos relógios, sem saber, despertara-me de um sono mecânico. Pequenas, mínimas mudanças. Caminhava mais lentamente, tinha tempo ainda. Tempo demais pela frente.

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

24. Anabel em seu dia de luz – anterior

26. Peter Pan na toalha – posterior

Imagem: Karin Jurick. Avenida Madison, Nova York (detalhe superior).

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