Office in a Small City por Edward Hopper

As folhas tenras da alface

Quando pequeno, imaginava que as frutas e as verduras, ao contrário de nascerem animais ou gente, aceitavam ser o que eram para que eu as saboreasse à mesa.

Possuí-la à sombra e à luz de Gauguin foi mais do que eu poderia esperar. Esse privilégio aumentava a dimensão de meu prazer, nem tanto por integrar-me quase naturalmente à lembrança das taitianas, mas por conhecer de antemão, de outros orgasmos, a obra contagiante desse artista sem pátria, que desde então passara a fazer parte de meu universo. Eu me deliciei com Vanda. Senti o cheiro e o gosto de sua pele. Senti meu próprio peso sobre seu corpo. Agradava-me percorrer-lhe com a boca a região do ombro, o pescoço rígido, enfiar-lhe a língua na orelha, tornar a beijá-la como se pudesse comer seus lábios, quando afinal senti que resvalava por seu dentro de mulher. Vanda aceitou-me com um gemido quase infantil, como se dissesse: “Aí está você. Esta sou eu.” Parecia pouco dilatada, e isso consolidou minha satisfação em experimentar-lhe a carne. Ao penetrá-la, não só gozei uma sensação natural de prazer e domínio como também uma espécie de bruta gratidão, não apenas por poder possuí-la como homem, mas especialmente pelo fato de ela aceitar ser mulher. E me instalava por inteiro, absorvido e conquistado, em seu calor definitivo.

Quando pequeno, imaginava que as frutas e as verduras, ao contrário de nascerem animais ou gente, aceitavam ser o que eram para que eu as saboreasse à mesa, absorvendo, por meio delas, a terra, o sol e as chuvas que as formaram, tornando tudo isso parte de mim. Mais tarde, passei a dar atenção às adolescentes em formação. Sentia-me atraído pelas folhas mais jovens da alface, as mais tenras, de um verde fresco, claro e convidativo. O grato prazer que me proporcionavam tais delícias estendeu-se secretamente a todas as mulheres que conheci e amei, que me encantaram com serem o que eram e por aceitarem nascer mulheres, fazendo-se entre as chuvas e o sol de suas infâncias, para que um dia eu as encontrasse e a algumas penetrasse a intimidade, menos do que elas sempre penetraram a minha. Ao comer Vanda, eu me nutria também de tudo o que a havia gerado, desde a lama fertilizada com chuvas ancestrais até o momento de gozo de sua mãe, e a tornava parte de mim, como as verduras me haviam feito crescer, forjando, aos poucos, um homem. Ao mesmo tempo e na mesma escala de valores, pressentia que o preço dessas delícias era também o fato de eu aceitar morrer, tornar à terra e deixar-me reciclar pelos vegetais que, como os mortos, serviam constantemente à vida. Sendo pouco mais jovem que eu, Vanda podia ser associada às folhas tenras da alface, que eu separava das outras, para meu próprio fascínio.

Naturalmente, nada disso me ocorreu no momento do gozo, mas ao tentar resgatá-lo em meu diário. E não espero que todos compreendam ou procurem saborear de meu relato a primavera com que são impregnadas suas palavras, nem que escolham absorver cada trecho com tudo que o gerou, na relativa fertilidade de minhas solidões.

Acha então que eu poderia ser poeta? Vamos, você não acredita nisso. E me faz preocupado. Júlio, Júlio. Como está ficando sensível. Sim, só me faltava essa.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

54. Vanda pela manhã – sequência

52. À luz amarelada de Gauguin – anterior

Imagem: Pino Daeni. Desejo.

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