Office in a Small City por Edward Hopper

À luz amarelada de Gauguin

À noite, alheia a tudo o que possuía, fecharia os olhos, guardando-os mansamente como se antes deles, antes dela, nunca houvesse acontecido qualquer outra coisa.

Júlio deliciava-se com o vinho branco. Os cubinhos de queijo também o comoviam com seu sabor, arrancando-lhe patéticos gemidos de satisfação. Só Vanda ele não havia provado ainda. Para começar alguma conversa, arriscou:

“Você está… diferente.”

Ela sorriu.

“Pareço?”

“…”

“E você gosta?”

“Pelo que sinto agora, confesso que sim.”

“Eu sabia”, ela enquanto se levantava do sofá, fingindo procurar alguma coisa na estante maior.

Júlio a seguiu.

“Que mais você sabia?”

“Que você ia chegar mais perto, assim, como agora.”

“E o que esperava?”

“Não espero. Deixo acontecer.”

Júlio não resistiu e prendeu seu corpo por trás, num abraço firme, quase agressivo.

“Já está acontecendo. E acho que já falamos demais.”

Ela se virou, olhando-o de muito perto, e Júlio ficou verde de vergonha, atinando, num instante, que acabava de precipitar-se no abismo de outra gafe, aliás nada sutil, nem se diga, traído por um impulso e uma necessidade, uma urgência que não aceitava mais palavras e ultrapassava barbaramente sua maravilhosa inteligência – e pensar que, minutos antes, quase se pusera a rir escandalosamente do canastrão na capa do disco…

“Júlio, quer parar com essa… Eu não acho que…”

Pensar que não suportava telenovelas, o ator. A vergonha passou assim que Vanda sorriu, ou riu-se, ela sim sutilmente, ante a embaraçada maneira de ele confessar-se sem querer. Ora, e o que esperava essa moça? Convidando-me e trancando a porta por dentro, dando-me de comer, e eu de beber a ela, afinal somos ou não namorados? Mas nem esse pensamento ganhou continuidade, pois outra vez emudecia tendo muito próximo o rosto dela. A pele sob tons de amarelo traziam-lhe as taitianas de Gauguin, só a boca menor, o nariz estreito. Os olhos agradavam pelo desenho. As íris, duas gemas evidentes, todo um segredo de heranças, a química dos elementos, as mutações desde o princípio, as algas arqueozoicas, passando pelos grandes répteis do Triássico, átomos e moléculas em constante movimento agruparam-se de forma a moldar aqueles olhos. Após o trabalho de incontáveis milênios, estavam ali, à sua frente, cintilando como fogo, as tintas de Gauguin no trópico, os olhos de Vanda em sua cidade. A mesma natureza que forjara aquele brilho, quem sabe o que traria num futuro remoto, se algo de mais belo e impensável. Júlio imaginava que ela viveria toda a vida sem nunca se dar conta de que os mínimos cristais em seus olhos podiam ter sido parte das retinas de um diplodoco – mas não, aí já se confundiam Triássico com Jurássico, mais atenção, por favor. À noite, alheia a tudo que possuía, ela fecharia os olhos, guardando-os mansamente, como se antes deles, antes dela, nunca houvesse acontecido qualquer outra coisa.

“Júlio, você está me ouvindo?”

“Claro. Claro que sim.”

Vanda livrou-se dele, sentou-se outra vez, suspirou e recostou a cabeça no sofá, como se lhe interessasse ficar observando o teto. Júlio sentou-se também. Ao lado dela, claro. Continuava seguindo, com os olhos, as linhas de suas roupas, as moedas na blusa, a bainha da saia, enquanto ela estendia e recolhia uma perna como se não soubesse ainda o que fazer dela, e quisesse balançá-la, e não lhe chegasse a altura do sofá. Júlio gostava de observar seus sapatos, a maneira como escondiam ou revelavam seus pés.

“Júlio…”, Vanda em outro tom.

“Fala, pode falar”, mostrando-se muito atento.

“O que você pensa de mim?”

A pergunta parecia simples. Uma pergunta dessas nunca é simples. Vamos, é mais tarde do que você imagina. Júlio multiplicou-se em elogios redundantes e gaguejou finalmente que estava apaixonado, o que lhe rendeu um beijo demorado e excitante, que teatrinho fazem esses adolescentes. O vinho era doce; o pescoço dela, convidativo. De repente, Vanda se livrou dele de novo, ergueu-se um pouco, olhou-o de frente.

“Posso fazer uma pergunta?”

“Hum… Não era essa, imagino.”

Em momentos assim, ela sustentava algum fonema, mesmo sem levantar a voz. “Nãããão”, entre bem-humorada e entediada. E subia as mãos pelas laterais do rosto, soltando-as após alcançar com os dedos a porção de cabelos que lhe cobria as orelhas.

“Você me ama?”

O quê? Claro que não. Mas sabia o que responder, já ouvira tal pergunta antes, geralmente formulada entre essas primeiras fases da vida, quando ainda se acredita muito nas palavras. Já tinha criada, selecionada e memorizada uma resposta, e aí vêm novamente pergunta e resposta, sempre se paga um preço por tudo.

“Acho que sim. Você me encanta.”

Beijos. Beijos. Boa resposta. Excelente resposta. A melhor. Um sim soaria falso. Um não traria o desastre. Mesmo que a amasse de verdade, ele não lhe diria. Isso o enfraqueceria diante dela. Toda pessoa, homem ou mulher, se sente superior a quem a ela se declara. Júlio sabia que tinham quase a mesma idade, lembrou disso ao ouvi-la querendo saber se a amava, uma pergunta tão ingênua que não parecia condizente com a personalidade dela, frívola e maliciosa, como até então a conhecia. Todos têm fraquezas mesmo. Ou distrações. Quase imaginou que fosse uma brincadeira, que ela iria rir, logo em seguida, da ingenuidade dele, caso respondesse que sim, movido pela surpresa, pela dúvida e principalmente pelo receio de perder todo o trabalho, espantando Vanda como a um pássaro, assim não passando no teste, tropeçando na armadilha, prejudicando a grande possibilidade de despir-lhe as roupas mais tarde e enfiar-se nela com seu volume no limite da expansão, assim como desde já o acompanhava sua própria boca, no limite da salivação.

Vanda não mais reagia. A saia lhe subia facilmente pelas coxas, coxas desenvolvidas, prenunciando a consistência das nádegas e o que mais pudesse derivar dessa homogenia, braços e pernas, Júlio avançando a mão que lhe dava conhecer mais da forma dela entre as curvas íntimas, as regiões secretas, agora nem tanto, agora, como o que ainda faltava de seu corpo, já bem perto de o deixarem de ser. Sob a luz amarela ou laranja, a parede antes creme, ou palha ou areia, as cores todas subvertidas pelo fantasma de Gauguin, Júlio beijou os seios dela pela primeira vez. Sabores imprecisos, às vezes mais doces… como um veneno. Sim, isso lhe lembrava, em seu diário, o veneno do início.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

53. As folhas tenras da alface – sequência

51. Queijo, vinho e… “o disco novo dele” – anterior

Imagem: Paul Gauguin. Duas mulheres taitianas. 1899.

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