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A edificante manutenção do tédio
E eu, que punha em dúvida minhas próprias opiniões, já não podia mais que desprezar as deles.
Pradinho queria saber de minha volta à cidade. Atirei-lhe uma ou duas palavras que deveriam bastar, mas não: ele aproveitava tudo. “Não é todo mundo que suporta esta cidade. Tem gente que sonha a vida toda em dar o fora daqui. Tem gente que consegue. A maioria não gosta daqui, mas vive aqui por necessidade. Muita gente vem pra cá porque precisa de emprego. Tem gente que mora aqui porque não tem dinheiro pra sair daqui. A maioria não gosta daqui, mas tem gente que gosta. Eu, pessoalmente…” Contou da mulher, dos filhos, o cachorro. “Meu menino é louco por carne. Que apetite! Come, o danado! Agora ganhou um cachorro. Quando eu não estou por perto, puxa as orelhas dele. Já cansei de ensinar a não puxar as orelhas dele com força, ouvi dizer que pode rasgar as nervuras. Tem uma força aquele menino!” Ouvi mais. Não conseguia detê-lo. Faltava-me coragem, ânimo. Ouvi muito. De muitos. Nunca tantos me aborreceram tanto, em tão pouco tempo. Homens… Eu os via em todas as idades, repetindo isto e aquilo, cultivando os mesmos costumes, emitindo as mesmas opiniões, mentindo sempre que possível, fingindo acreditarem uns nos outros e cada um em si mesmo cada vez mais, pois parecem não mudar nunca, e seguem cacarejando suas mesmas verdades, em meio ao dia mais rotineiro ou entre os discursos das noites contaminadas de solenidades, até que morram disso, de sua insuficiência, de sua rotina de mentiras solenes, em meio a todo o vocabulário que se amontoou para bem servir à sua defesa – mas não há perigo, que já houve tempo de preparar a geração seguinte. E eu, que punha em dúvida minhas próprias opiniões, já não podia mais do que desprezar as deles.
Pela manhã, mal ultrapassava a portinhola do balcão, já distinguia, entre os primeiros rumores do expediente, as vozes de Cândido e Clemente, dando seus bons-dias a todas as criaturas pensantes (e não pensantes) do escritório. Eles faziam questão de não deixar passar ninguém. Talvez houvesse um medinho supersticioso nisso, como os tolos que não podem sair da cama ou começar a subir degraus com o pé esquerdo, ou os que creem que ser do signo de Touro possa lhes trazer alguma vantagem real ou até mesmo a felicidade, quem sabe. Esse estranho ritual dos bons-dias fazia parte das necessidades deles, como em certas religiões são exigidas preces diárias. Isso já se havia demonstrado completamente inútil, porque às vezes desenrolavam-se dias terríveis para alguns ali – ou para todos, dependendo da situação.
“Bom dia”, um deles ou outro, meio cantando, meio sorrindo. “Ei, ei! Falei com você, amigo. Tenha um bom dia!”
Às vezes, eu ficava considerando as atividades humanitárias a que eles se entregavam: admirava-os por isso, sem nunca antes haver questionado o fato de que eram eles, antes de tudo, movidos por suas próprias carências, pois esse pensamento fazia que eu me sentisse um homem mesquinho e sem coração, afinal é preciso usar um pouco de bom senso para aprender a discernir a boa-fé das pessoas das más intenções das igrejas. Clemente, para que não se deixe de lembrar, participava como voluntário de um movimento de auxílio a drogados que se chamava Jesus contra meu sofrimento, registre-se. Cândido visitava orfanatos nos fins de semana, acompanhado dos amigos de sua religião, e tanto ele como Clemente mantinham-se, de alguma forma, envolvidos com tais atividades, com esses exercícios de altruísmo, com a caridade, com a solidariedade geral e com as desgraças dos outros. Várias vezes, como já se dera comigo, durante a trajetória normal de uma pessoa, foi possível crer que, com pequenas atitudes assim, poderia o mundo ser outro, não sei se melhor. Pois essas tristezas sociais, a caridade ajuda a mantê-las. Quanto às suas causas, ninguém ousa confessá-las.
“Bom dia… Bom dia…”
“Bom dia, Cândido. Como vai essa força?”
“Bom dia, não me ouviu não? Dormiu comigo?”
“Bom dia, Clemente. Alguma novidade pra nós hoje?”
“Bom di-i-a!”
“Bom dia.”
“E a luta?”
“Na luta, graças a Deus.”
Minha vez. “Bom… dia…”, repetiu Clemente cantarolando, e eu quase – quase! – passando reto. Detive-me ali mesmo e me virei, apoiei as mãos sobre sua mesa, olhei para ele como quem traz um grave segredo, prestes a ser revelado.
“Sonhei que o governador estava recebendo o Prêmio Nobel da Paz.”
“O quê? O govern…?”
“Sonhei que o governador…”
“Eu ouvi, eu ouvi!”
“… que o governador estava recebendo o Prêmio Nobel da Paz”, agora meneando a cabeça positivamente, sim, isso mesmo, confirmando tudo.
“Nossa! Bom dia, pelo menos, né?”
“Havia uma plateia para homenageá-lo, sabe como é?”, expliquei, abrindo os braços em arco, numa sugestão de amplitude. “E eu era o único que gritava: ‘Hipócrita! Hipócrita!’. Mas veja você, que horror: a voz não saía da garganta.”
“Cru-uzes!”, Clemente afastou-se um pouco, os olhos mais abertos do que o normal. “Esses teus pesadelos vêm se tornando cada vez mais estranhos. Eu, hein?”
No fundo, eu queria crer que o meu caro Clemente da Trindade não pertencesse àquele grupo de cretinos viciados em felicidade, entre os que têm sempre uma palavra pronta a nos fazer otimistas, entusiasmados, motivados e com novo ânimo, embora quase sempre eles nos ponham (mas claro que nem de longe o percebem) mais aborrecidos e entediados do que antes.
A seta de Verena – Guia de leitura
53. Sem ação, sem reação – sequência
51. Muito, muito desconfiados– – anterior
Imagem: Tom Brown. O rumor da cidade. 2011.
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