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… e esquecer o resto
Lembro-me de eu ter lhe perguntado as horas, ela disse apenas: “É mais tarde do que você imagina.”.
Juntos até o fim da festa. Ninguém os incomodou, o que parecia incrível. Também não perceberam o avanço das horas. Assim são as festas. Não, a festa já não era a mesma. Uns rapazes dividiam cerveja com duas garotas que só faziam rir de seus gracejos obscenos. Bruno havia desaparecido. Lea também, claro. Vanda levou-o a sentar num almofadão de canto, livrou-se dos sapatos, soltando uma tira no tornozelo. Ao lado dela e sob o efeito do álcool, parecia-lhe simples pensar em apenas experimentá-la, quem sabe até, o grande idealista, conquistá-la. O que então lhe ocorria muito espontaneamente, mas como se já se antecipasse àquele dia e àquela noite tal propósito, sim, conquistá-la como único objetivo, e esquecer o resto. A brisa entrando pela janela dispersava a neblina de muitos cigarros. Conquistá-la, e nem sabia quem era. Também a mesma brisa quase o fazia ver, entre o mais que se estendesse para além da fina parede em que se apoiava, a luz cinza que supunha entrar obliquamente e formando um trapézio no ângulo oposto, agora em trégua e de olhos fechados, a perspectiva de uma cidade suspensa, a luminosidade e a penumbra distribuídas pelas alturas e sob controle, os infinitos apartamentos, os simultâneos encontros, sua vez de beijá-la, o céu claro da noite. Conquistá-la, que estranha ideia. Esquecer o resto. O resto, o que era mesmo? O resto, o que era tudo.
Vermelho, e não rosa, é a cor da mulher. Ela usava vermelho, talvez isso tenha me influenciado. Lembra-se de minha mania de associações? Não que possa com isso explicar tudo, nem era de se esperar, falo quase como me desculpando, ora, mas pelo quê? Pois não é a carência um dos males crônicos da humanidade em todas as épocas? Ajude-me, se me distraio. Lembro-me de eu ter lhe perguntado as horas, ela disse apenas: “É mais tarde do que você imagina.”. Não pude deixar de ver nessas palavras um sinal para minha própria vida, para os meus dias, fases atravessadas como se não houvesse nada a perder. Mas talvez houvesse. E fosse o tempo de percebê-lo. Um mundo de janelas para a noite e infinitos edifícios às escuras, restos de imagens e sensações que sempre dão em nada, tudo não passa de literatura, aproveitamento de restos… Restos, que palavra! Os medíocres a usam demais.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
49. Foi bom ela não ter vindo – sequência
47. O nome dela era Vanda – anterior
Imagem: Pascal Magis. Azul.
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