Office in a Small City por Edward Hopper

A prometida história de fantasma

Comentou que naqueles tempos as mulheres eram de verdade, sem truques nem retoques da tecnologia.
Mas eu lhe disse que era ingenuidade dele, que os retoques existiam desde a invenção da fotografia. Só tinha ficado mais fácil.

“Hoje à noite, então. Vou esperar.”

Cerveja no meu apartamento, coisa à toa, mas o Paulo Marcos nos prometendo uma história de fantasma que tinha acontecido com ele uma vez. O Marcos Paulo chegou primeiro, já tomava uma comigo, e só quando nosso outro amigo chegou foi que confirmamos as latinhas e long-necks insuficientes na geladeira, além de não encontrarmos nenhuma dessas belezuras no freezer. Eu nunca fui mesmo um bom anfitrião: sou distraído, tinha me esquecido de conferir a cerveja. Próximo passo: sair para comprar mais.

“Ah, não, velho. Sair de novo?”

O Marcos Paulo já tinha se soltado no sofá, com aquele ar de quem só se levantaria dali para tirar a calcinha de alguém. Falei que ficasse, eu estava com um Thelonious Monk que ele não conhecia, bem ali, “em cima daquela estantinha, pega lá, vai ouvir”. (Quando voltamos, o Marcos Paulo não estava apenas ouvindo o Thelonious, mas ilustrava sua ociosidade folheando uma Playboy meio antiga que ele tinha achado por ali, não sei onde.)

No caminho, o Paulo Marcos comentou aliviado que estava livre da ex-namorada, afinal. Sem contato, sem nenhum sinal, nem sabia por onde ela andava, a Paula. Eu não acreditava que ele se sentisse aliviado, não me convencia muito bem disso. Achei melhor ficar quieto. Da última vez que eu vira a Paula, ela estava diferente mesmo. Um sorriso quase infantil, um jeito meigo, uns olhinhos fingindo inocência, e isso tudo vinha acompanhado de um corte de cabelo novo, outro visual, outro tudo. Ela, evidentemente, parecia estar se sentindo linda com aqueles cabelos vaporosos, para não dizer pavorosos, mas não, não querendo aproveitar a obra do acaso, o trocadilho não correspondia à realidade, ela estava muito bonitinha mesmo. Só que essa mudança toda dela já era um sinal de que alguma coisa iria acontecer. E não deu outra, e foi o que deu. Ela que deu: “um pé na bunda assim, sem mais nem menos, tá bom?”, contou o Paulo Marcos, enfático.

“Deixa. Tanta mulher por aí, fica frio”’, eu disse tentando animá-lo. “E, olha, você tem que parar de ficar falando que ela virou uma putinha e essas coisas… Só porque você não…”

“Uma puta completa! Uma vaca absoluta!”, declarou o rabugento. Mais enfático ainda.

Ele se fazia pateticamente exagerado quando falava na Paula. Deve ter sofrido, coitado, mas esse tipo de coisa o cara guarda e não conta nem aos melhores amigos – supondo que fôssemos nós os seus melhores amigos, nunca se sabe.

“Vai acabar rica que nem aquela Surfistinha, você vai ver. E a Bananinha e a Birutinha… Essa gente fica rica de tanto dar o rabo. Depois, os donos da editora, os fotógrafos, a revista, todo mundo se enche de grana com essa putaria toda. É esse o problema da humanidade de hoje. Daqui a pouco tem um livro dela por aí, escuta só o que eu estou dizendo.”

Para ele, todos ficavam ricos fazendo qualquer porcaria, menos ele, menos nós. E todos aqueles ressentimentos que o Paulo Marcos projetava sobre a pobre da Paula vinham levando mais tempo do que o normal, pois o namoro tinha acabado há uns tantos dias já, pouco mais de um mês, que eu mal calculasse. No fundo, eu achava que ele ainda sonhava com ela. Com o sorrisinho fingido dela, com os olhinhos sorridentes dela… Ou com o rabo dela mesmo.

“Uma vaquinha ridícula, isso que ela virou”, resmungou ainda, enquanto eu dirigia fingindo estar atento ao trânsito noturno, não querendo dar corda às ofensas avulsas dele, aliás inúteis, apontadas para uma mulher invisível.

Quando a Paula mudou o cabelo, ganhou uns elogios dele sim, previsivelmente. Mas, com o fim da relação, o Paulo Marcos passou a estender seus comentários corrosivos a algo mais amplo, lembrando que “esses viados desses cabeleireiros ficam ricos, milionários, enchem o rabo de dinheiro fazendo essa mulherada só parecer mais puta do que já é. Elas saem de lá com esses cabelos fodidos de lindos, sorridentes, autoconfiantes, querendo conquistar o mundo e trair os maridos”.

Normalmente, ele usa chifrar, mas dessa vez usou o verbo trair, o que considerei uma sutileza evolutiva, um sinal positivo de maturidade por parte dele.

“É o mal do nosso século, essa mulherada perdida”, concluiu.

A loja de conveniência emitia uma luz branca muito forte, refletida em todos os seus vidros. O Paulo Marcos entrou piscando, a luminosidade incomodou nossa vista, acostumada às ruas mais ou menos escuras. Isso me fez pensar em diminuir a luz da sala quando voltássemos, talvez deixar só um abajurzinho num canto, criar um clima para o caso de fantasma que ele iria contar, com certeza uma dessas lendas urbanas de adolescente que eu sempre pagava para ver, jurando não fazer perguntas e levar tudo na brincadeira, porque sempre que faço alguma pergunta, desmorona tudo. Por exemplo, como a pessoa morta conseguiu teclar no celular – e outros detalhes corriqueiros, mas que implodem todos os pilares dessas historinhas sinistras.

“Você não acredita, mas você vai ver”, ele alertava enquanto íamos, como bons caçadores-coletores, juntando as latinhas geladas da nossa marca predileta, capturando ainda umas pretinhas para mais tarde.

Nossa vez no caixa: “33 e 40”, disse a funcionária de plantão.

Ele bateu com as costas da mão direita na palma da outra.

“Pá! Olha só: trinta e três e… quarenta! Olha a coincidência!”, afastando-me com um ligeiro empurrão. “E você não acredita, velho.”

“Que que tem? Que coincidência é essa?”

“Trinta e três é a idade da Paula. Quarenta, a minha.”

Ele estava forçando à toa. A Paula tinha vinte e oito, que eu me lembrava. Mas ele retrucou e disse que “vinte e oito era o caralho, ela tinha era trinta e três, a mentirosa safada. Trinta e três, velho!”

“A idade do Cristo…”

“A idade daquela puta. Que eu sei!”

Apressei nossas latinhas no balcãozinho estreito, meio envergonhado pela garota que nos atendia, e antes que a Paula sofresse outro ataque de mísseis.

“Pode ser em dinheiro mesmo, confirma aí…”

“Como é o seu nome, meu bem?”, ele perguntou a essa menina do caixa, à nossa frente.

Ela não se mostrava nem um pouco entusiasmada com o jeito extrovertido e autoconfiante dele, estava na cara. Mantinha-se neutra, cautelosa, sem sorrir. Compenetrada, enquanto passava nossa mercadoria pelo leitor óptico. Devia ouvir um monte de chateações de uns caras como nós o dia inteiro.

“Paola”, disse.

Ele quase deu um urro das cavernas.

“Olha! Ouviu, velho? Você não acredita…”

Abrimos a porta do apartamento, carregando o produto de nossa caça-coleta em direção à cozinha, uns saquinhos pesados, latinhas se batendo como se quisessem participar de alguma roda de samba.

O Marcos Paulo estava ali, com a velha Playboy em mãos, se babando pela gata do mês (a puta do mês, nas palavras dele). Olhei a capa, reconheci a revista.

“Ah, essa? Afinal, que diferença faz a gata do mês, a gata do ano, elas são todas gostosas, que diferença faz?”

“Não sei…”, disse ele intrigado.

Comentou que, naqueles tempos, as mulheres eram de verdade, sem truques nem retoques da tecnologia – hoje chamam tudo de tecnologia, nem se preocupam com alguma palavra mais específica, enfim, isso é o de menos. Mas eu lhe disse que era ingenuidade dele, que os retoques existiam desde a invenção da fotografia e dos negativos. Só tinha ficado mais fácil.

“Mas elas eram de verdade mesmo, olha só, olha esses pelos. Não é truque não.”

Olhamos. Unanimidade: “Não é truque não.”.

Sentamos no carpete, apoiados no sofá e numas banquetas de cubo, ao redor da mesinha. Deixei só o abajur aceso a um canto, como havia idealizado uns minutos atrás.

O Marcos Paulo perguntou se tínhamos visto a notícia da demissão do diretor da CIA, por causa de um caso extraconjugal. Sim, claro que vimos. Esse tal David Petraeus (que nós, moleques, chamávamos de Penetraeus) apareceu em público ao lado de sua esposa, uma baixinha de penteado cheio, cabelos de um cinzento-azulado, quase violeta, uma espécie de Madame Min melhorada, que pelo jeito já havia perdoado a farra toda. O pior era que a amante do cara se chamava… Paula! Não, nem toquei nesse ponto, claro.

“Além disso, ele arrastou uns outros generais com ele”, observei. “Estavam todos tendo casos.”

“Mas esse efeito dominó tem que parar em algum ponto”, previu o Marcos Paulo, perspicaz. “Senão, todos os homens do mundo vão acabar perdendo o emprego, não é possível.”

“Isso é só pra quem tem cargos importantes”, lembrei.

“Não se pode mais comer ninguém, esse é o mundo que nós estamos vivendo” observou o Paulo Marcos com forçada tranquilidade. “Olha só: o cara perder um puta emprego desses no Pentágono por causa de uma vagabunda. Um cara que controla até bombas atômicas.”

“Que ultrapassado, velho. Que isso de bombas atômicas? É outro tipo de coisa, armas sofisticadas e tal. E além disso ele era da CIA, não do Pentágono.”

“E aquele da França também, por causa da camareira, lembra? Uma vaquinha de nada. E o cara era pra ser o próximo presidente…”

“É o mal do nosso tempo. Essa mulherada perdida”, repetiu o Paulo Marcos como quando criticava os cabeleireiros malvados.

O Marcos Paulo então lembrou, nostálgico, que, nos primórdios das redes sociais, nos anos pré-históricos do começo do século vinte e um, algumas mulheres de meia-idade postavam fotos de franjinha e carinha de ingênua, olhar insinuante e dócil, rostos estrategicamente distantes da câmera e outros artifícios – isso quando não usavam mesmo alguma foto mais antiga, supondo que todos a entenderiam como atual. Nesses tempos pioneiros, alguns pensavam que poderiam enganar os outros com alguma figurinha forjada, hoje sabemos que não é assim tão fácil. O Marcos Paulo, na época, muito volúvel, havia caído numas duas ou três ciladas do gênero – do gênero feminino, digo. Palavras dele: “E você conversava um pouco com esta ou aquela gracinha de franjinha e decotinho até ouvir que ela tinha que cuidar da neta ou pegar a neta na escola e… Neta?! Para!”.

“É assim que elas agem, não têm ética nenhuma”, disse o Paulo Marcos servindo outra rodada a todos, do que chamávamos bebidas alcoólatras. “São as illuminati do mundo. E ninguém percebe.”

“Ah, mas que maldade”, falei. “Todo mundo quer parecer um pouco melhor na internet, isso é normal. Nas redes sociais, todos se tornam meio artistas. Nós também. Aquela sua foto com o bonezinho…”

“Tudo bem, tudo bem, mas… neta?! Porra, que isso agora, velho? E ainda quer sair abanando o rabicho por aí?!”

“É. E o besta aqui encantado com a corujona. Para!”

“É o fim dos tempos”, ponderou o Paulo Marcos, filosófico. “A rede social, a última etapa do abismo.”

Meia hora de fofocas, mas não bastava. Eu e o Marcos Paulo já tínhamos nos esquecido de cobrar a tal história de fantasma que o Paulo Marcos tinha vindo contar. A noite esticou mesmo. Pus mais uma vez o Thelonious para tocar. Cerveja suficiente, um sossego. Só mais tarde o Marcos Paulo perguntou ao Paulo Marcos sobre a Paula, “que que virou dela afinal?”, que era justamente o que eu não queria que acontecesse. E ele ainda quis saber o que tinha virado dela! Pior impossível. Tentei fazer-lhe um sinal, não queria voltar a esse assunto chato da ex-cabelos-vaporosos, mas não deu tempo. O Marcos Paulo apertou o botãozinho das ogivas nucleares, e a Paula foi novamente classificada de acordo com o poder vocabular dele.

“E você…”, apontando para mim, meio bêbado. “Não vai escrever no seu blog essas porras que eu falo aqui, hein? Senão, a nossa cerveja já era.”

Jurei por Deus, para que ele se tranquilizasse.

“Quero ver a minha mãe morta”, reforcei.

A história de fantasma ficou para a próxima.

Este conto e o anterior, Um par de amigos, um caso ímpar, com os mesmos personagens, seriam os primeiros de uma série tratando da amizade entre os homens, seu cotidiano, seus interesses, usando uma linguagem acessível, tons de bom humor e mencionando atualidades.

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

Um par de amigos, um caso ímpar – anterior

Não são estas as minhas certidões – posterior

Imagem: Edvard Munch. Madonna. 1894.

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