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Girassol do mal
Disse que não falaria mais de Bruno, mas ele precisa voltar.
“Júlio, eu estou dizendo: elas são umas taradinhas!”
Ele não sabia de que mangas saíam as garotas que Bruno parecia arranjar quando quisesse, por exemplo, a ex-colega de classe cujo telefone mal rabiscado ressurgira miraculosamente em meio à sua desordem íntima.
“E a outra?”
“Chega de perguntas!” – tendo sido “E a outra?” a única pergunta. “Anda, vai pegar uma camisa.”
Da outra vez, Bruno havia lhe apresentado uma colega de trabalho que se fizera acompanhar da prima, também maquiada de maneira cuidadosa e cativante, a fim de parecer mais jovem, mais próxima da idade deles. Bruno, estrategicamente, estreitara-se no trato com a prima, que era inclusive mais atraente, deixando Júlio a cargo de sua colega silenciosa, difícil de falar, o que mais tarde ele não achou tão ruim, pois ela só fazia repetir detalhes de suas tarefas como secretária veterana. Falava sobre um certo departamento da diretoria e sobre uns fulanos famosos de seu meio corporativo (estranhou muito que Júlio não os conhecesse, nem mesmo de nome), tentando assim convencê-lo da relevância de seu cargo, afinal de contas… Isso o encheu de desgosto. Desde o início, ela vinha lhe inspirando um certo dó, não só por revelar-se uma pessoa bem-sucedida e sem brilho, mas porque seu sorriso lânguido e sua timidez o entristeciam, mal disfarçando a realidade de um cotidiano carente e solitário. A essa altura, Júlio estava convencido de que não conseguiria excitar-se com ela. Mas foi crescendo nele uma estranha e cruel satisfação por sabê-la uma mulher apática e frustrada, o que não tentou explicar a si mesmo, e um desejo sempre mais forte de possuí-la conforme ela dava a entender que se dispunha a submeter-se sem restrições aos caprichos de seu parceiro, mais tarde aceitando e propondo experiências para Júlio agradáveis, mas que talvez, por seu lado, lhe tenham sido incômodas. Como ele não contava, essa moça tímida, de retórica dispensável, acabou por levá-lo aos limites de seu êxtase.
As mulheres de Bruno eram sempre uma surpresa para ele. Antes dessa secretária passada dos trinta, vale lembrar, uma colegial entusiasmada, de índole festiva, em tudo maliciosa e promissora, dera-lhe uma noite inesquecível, graças ao sono fulminante e progressivamente profundo que a prostrara logo após uns primeiros drinques e uma primeira investida, e que nem o beijo de um sapo predestinado poderia reverter.
Uma surpresa? Nem sempre. A dessa noite não o surpreendeu. Só não podia imaginar que agora seria ele próprio sua ingrata surpresa. Elas já esperavam, quando Júlio e Bruno apareceram no bar. Não eram exatamente bonitas. Também não eram exatamente feias. E não chegavam a ser desagradáveis, isto é, apenas fisicamente. Contaram de seus professores, mencionando características e peculiaridades de cada um, e isso fez que Júlio, disfarçadamente, se torcesse de tédio. Claro: um deles, tarado por mulheres; outra, uma víbora recalcada; e não faltou o gênio das exatas, o decantado crânio! Disso, passaram a narrar digressivamente todo um filme adaptado de um romance norte-americano que fazia muito sucesso por aqueles dias. Enfim, a conta tão desejada, pelo menos de sua parte, pouco depois de as meninas concordarem em conhecer um motel de nome sedutor, que mais tarde se revelou um tipo de pardieiro reformado, porte médio descendo a ordinário, o que os entristeceu de certa forma e os decepcionou a todos.
Logo que saíram do bar, aconteceu: o girassol inteiriço que era a soma de todas as estrelas inundou os olhos dele com súbita e irresistível intensidade. Pouco antes, vira, de um relance, Bruno e sua parceira, logo à frente. A áspera simetria do calçamento. Os pés da garota que se abraçava a ele. Seus próprios pés. Perdia o controle de sua lucidez. Uma vertigem impregnada de abstração, formas fosforescentes e realidade percorreu-lhe os sentidos, tragando-o numa inconcebível aceleração de imagens e sensações, não sabia se revistas ou pela primeira vez sonhadas: pessoas em trajes antigos, em diversas circunstâncias, transitando por muitas cidades do mundo, pareceu-lhe ver de novo Bruno e as meninas, a ordem natural das atrações involuntárias, a aproximação dos sexos, a revelação da morte, os casais ausentes há muitas décadas-séculos-épocas e a inominável sutileza de estarem todos passando. Demolido o bar de onde saíram, a própria cidade envelhecida de chuvas, à margem de outra, num delírio surdo, mas vertiginoso, em que nada era ele, tudo isso no instante de estar cego, a agonizante fração de segundo na qual coubera a explosão de fulgor intolerável que em seguida passou a regredir, como se murchasse ou escurecesse, as pétalas imprecisas do girassol tremulando ao se retraírem, uma esfera de fogo que se afastasse ou diminuísse de tamanho entre os fosfenos.
“Que foi?”, a que estava ao seu lado, assim que ele parou de andar.
“Não sei.”
O girassol interrompido. Sentia as pernas enfraquecidas pela vertigem. Disfarçou uma careta de náusea, apertando os olhos contra os dedos. Resvalou sobre si mesmo, a um passo de perder o equilíbrio. Mas estava abraçado a alguém.
“Que que tá acontecendo?”
Boa pergunta, querida – Júlio supondo falar-lhe. Boa pergunta. Não só com relação a mim. Se é que me entende.
“Seu amigo tá passando mal.”
“Que foi, Júlio?”
O que está acontecendo?, dizendo-se a si mesmo sem dizer, com imaginada entonação neutra. O que está acontecendo?
“Nada. Não sei. Um mal-estar, acho. Já tá passando.”
Talvez tudo não passasse mesmo de um mal-estar. Tudo. Se é que me entendem – quase o dizendo.
“Tem certeza que tá tudo bem?”
“Não. Não tem importância. Podemos ir. (Se é que me entendem.)”
Tornou a sentir, agora com relativa nitidez, a consistência do que o cercava: o rumor dos veículos, uma buzina a alguma distância, o casal à frente, o ombro palpável da que o acompanhava, adivinhando que terminaria a noite com ela em alguma cama do mundo. Onde estivessem a salvo por algum tempo. Onde se sentissem jovens. Por algum tempo. Se é que o entendessem.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
43. Um e outro, dois lados da coisa – sequência
41. Um relógio, por exemplo – anterior
Imagem: Joan Miró. Pintura (detalhe inferior). 1950.
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