Office in a Small City por Edward Hopper

Não gosto que me chamem assim

Eles perderam a graça de vigiar-me. E me olhavam feio.
Mas quem ia perdendo as graças de qualquer maneira era eu, sem dúvida.

Fim das férias. Os primeiros dias de serviço foram menos repugnantes, mais suportáveis do que eu previra. A começar pela nissei que atravessava minha manhã, sempre vinda da estação do metrô, sempre bem-vinda, aliás, agora em vestidos curtos, leves ou semitransparentes, ainda mais bela no verão. Se minha precária capacidade perceptiva não me enganava de vez, eu podia assegurar a mim mesmo que essa colega de estações, leia-se nos dois sentidos, leia-se também nos dois sentidos em ambos os sentidos, pois, enquanto eu ia e essa garota voltava, notei que ela passara a reduzir o ritmo dos passos intencionalmente, dando-me como sinal a variação do som de suas sandálias claras, como para demorar-se um algo mais ao cruzar comigo, para que eu pudesse apreciá-la por mais tempo, quem sabe, talvez, pode ser, e então, querida, como vão as coisas? – sonhava dizer-lhe. Fantasias à parte, o fato é que dessa vez ela quase me sorriu. Talvez desconfiasse de alguma mudança em mim.

No escritório, ouvi de alguém que era preciso ter bom humor para animar os colegas que porventura estivessem de mau humor. Mas, em minha opinião, nada pode irritar mais uma pessoa de mau humor do que encontrar um desses patetas de bom humor. E não estaria eu a serviço dos patrões nessa tarefa, que é a deles, de unir a todos nós em um clima de fraternidade, com o propósito velado, embora evidente, de produzirmos sempre mais e melhor, para benefício de suas contas pessoais. Mas, afinal, por que me diziam isso? Desconfiavam de alguma mudança em mim.

“Pois é, meu amigo”, falavam os colegas. “Pois é, meu amigo”, falavam os clientes. “Pois é, meu amigo”, falava o doutor Aguiar.

Não gosto que me chamem assim, principalmente se não são meus amigos. Cada vez eu confiava menos nos que me sorriam, ou eram estes os ardilosos ou aqueles os ingênuos – fosse como fosse, nenhum dos dois tipos me animava a qualquer reciprocidade. Eu não estava disposto a fingir como eles. E não queria mais ser amigo de todo mundo.

De alguma forma, a um tempo incomodava de maneira obscura o que se fazia familiar nesse ambiente, também nunca esquecido de todo durante os extensos dias no acampamento, e era como se eu me sentisse outra vez seguro ao reencontrar meu velho grampeador Fenômeno, minha carimbeira Esplendor, meu furador São Jorge, minha caixinha de grampos Confiança, que eu escondia cuidadosamente no fundo da gaveta, sim, objetos de um valor extraordinário, que me acompanhavam durante a maior parte do dia, e a maior parte do dia era também a maior parte do tempo de minha vida, é bom lembrar, e estavam impregnados em meu inconsciente tanto quanto a cor das paredes ou os misteriosos desenhos do piso, objetos como meu extrator de grampos Fortaleza ou a minha régua, que era um brinde do Auto Posto Bom Jesus, ainda o calendário de mesa, com endereço e telefone do Empório N. Sra. Aparecida, imagens mostrando um cavalo junto a uma cerca, um cesto com dois gatinhos assustados (que bom: para o mês seguinte, terei um par de peixinhos vermelhos), não se deixando de mencionar a minha fiel pasta sanfonada Maravilha, que eu guardava, como o faziam todos os colegas, no grande armário de aço Livramento, por sinal, marca das mais precárias, diga-se, mas que servia, enfim, ao seu propósito, configurando praticamente os arquivos do térreo e preenchendo toda uma lateral do salão. Enquanto isso, os dias e as horas, quero dizer, as semanas ou nem tanto, os meses com seus nomes próprios, reverberando sutilmente, cada um por si mesmo, ao se iniciarem e ao se encerrarem, os calendários, enfim, vinham sempre mais pesados e lentos, insuficientes para consolar meu tédio.

Enquanto isso, enquanto tudo, os escravos continuavam vigiando-se uns aos outros, para alegria dos patrões. “Quarenta minutos de almoço? Que era o cardápio hoje? Baleia?” Risos entre alguns, o escravo disfarçava o atraso, corria à sua mesa de trabalho, fazia como se houvesse chegado há certo tempo, rezando para que não voltassem a tocar no assunto. “Pô, todo ano tirando férias? E ainda ganha o mês, olha só, que mais você quer?”, brincadeira infinitamente repetida a cada um que se anunciasse em vésperas de tais direitos. “Vida mansa a tua: uma semana, seguida, encerrando dez minutos mais cedo.” “Que folga, hein? Dois dias de licença médica? Já não passou da hora de sarar dessas frescuras?” “Tá pensando o quê, cara? Vamos trabalhar, que a coisa tá feia!” Eu os ouvia e os associava a outros múltiplos exemplos que não conseguia esquecer, como certa vez em que presenciara um mestre de obras ralhando com um aprendiz: “Não sabe fazer nem isso direito não, traste? Não aprende não, desgraçado?”. Era um rapaz triste e belfo, ar de imbecilizado, pelo que tudo mostrava, de natureza limitada, sem culpa de ser como era, mas, de uma forma ou de outra, o mestre de obras, hoje a correia de transmissão de engrenagens ocultas e poderes inacessíveis, poupava o engenheiro, ou quem fosse o seu superior, de dirigir-lhe as imprecações. E para quê? – se os escravos podem muito bem humilhar-se uns aos outros, sem que se incomodem os senhores. Assim é, que, no fim das contas, sempre um de nós, entre vários de nós, acaba ouvindo, de outro como nós, um: “Você não sabe nada, não presta pra nada mesmo!”.

“Roupa nova, aonde é que vai? Eu, hein? Anda assaltando algum banco? Ou é amigo do governador?”

“Não sou amigo do governador. Posso fazer meus assaltos sozinho.”

De fato, eu não ia bem. Não precisava ter respondido, ninguém precisava saber. Uma fala contra outra, isso era inaceitável, que os chistes e provérbios deles é que prevaleciam sempre, dentro da órbita do bom humor e do que se supunha espirituoso. Isso só fazia crescer a aversão de alguns escravos com relação a mim, estava claro. Porém, eu é que não mais esperava que me estimassem por qualquer motivo, enfim, por motivo nenhum. Eu os fazia constrangidos só de não participar daquela rede de vigilância e inspeção recíproca que algum espírito misterioso teria incutido em todos nós, para que continuássemos nos denunciando e nos delatando uns aos outros, como fosse isso uma grande vantagem para esses bons patriotas. Eles perderam a graça de vigiar-me. E me olhavam feio. Mas quem ia perdendo as graças, de qualquer maneira, era eu.

A seta de Verena – Guia de leitura

51. Muito, muito desconfiados – sequência

49. A primeira história mágica interrompida – anterior

Sobre o livro

Imagem: Lesley Spanos. A vista. 2009.

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