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Por vezes, como uma canção de ninar
O sempre das manhãs que voltam é que é sempre o mesmo.
O que está acontecendo? Alguma coisa dá sinais de possuir-me, está presente. Não é apenas uma impressão. Mas não faço ideia do que seja. Quero crer que o cansaço tenha me alterado, quem sabe. O cansaço, claro. O trabalho.
No trecho que diariamente percorria a pé enquanto voltava para casa, o sintoma se repetiu. Podia pressenti-lo. Passando pelos postes de iluminação, projetava sua sombra nos muros e fachadas mais próximas. Ela passava por sob seu corpo, distanciava-se mais à frente, era substituída por outra, que era a mesma de alguma forma. Sem que o desejasse, o pensamento imediato de que aquela sombra deixaria de se mostrar, para nunca mais se repetir, assaltou-lhe a imaginação. Outra vez o calafrio, uma espécie de arrepio de nojo. O arrepio, como a sombra: um dia, não mais. Estacou, com uma careta. Mãos no rosto tentando evitar a vertigem, em vão. Talvez estivesse apenas doente. Não era pouco. Chegou a pensar que aquilo tudo tinha alguma relação com sua sombra, antes com sua consciência de sua sombra. Terça-feira.
Quando eu não mais estiver aqui, talvez alguém passe pelo mesmo caminho. Talvez se defronte com o mesmo estranho mal que me consome agora. E sentirá, com dolorosa intensidade, uma vertigem semelhante, atravessada de vazios. Não basta saber disso. É preciso senti-lo.
Por isso, voltava sempre ao seu diário. Porque era preciso contar. Quarta-feira.
No dia seguinte, senti como se as inquietações se esvanecessem, deixando-me vazio. Eu as teria esgotado? Seria simples livrar-me disso, como se esvazia um balão? Caminhava, rumo ao trabalho, sentindo que não sentia. Sabia que era ainda uma pessoa, mesmo indiferente ao que me cercava, sem atração pela vida, começando pelo aspecto insinuante das mulheres ocasionais dessa manhã até o que uma vez foram meus próprios sonhos de futuro. A realidade não podia alcançar-me como antes. Nem mesmo alcançar-me. Não parecia que eu era uma pessoa, um homem. Não parecia que eu era alguma coisa.
A melodia melancólica, fluindo da loja de discos, retardou seus passos. Não sabia por que se detinha, não lhe interessava saber. Não sabia que era o Adagio de Albinoni, mas lembrava-se de tê-lo escutado antes. Via os objetos através dos vidros. Via seu turvo reflexo alterado pelos matizes de opacidade e transparência, quase via a música além de sua manhã, das gentes e do comércio, pois ela parecia ter asas e flutuava no tempo que o retinha. Que o movia sem que caminhasse. Que o fazia estacar sobre infinitos gestos. Por vezes, como uma canção de ninar. Crescendo depois, sempre sobre um fundo de suavidade que era seu próprio avesso contra a paz que jamais conheceria o ouvinte cristalizado ante os vidros, mas erguendo um pouco a cabeça como a sinalizar que sim, que estava a par daquelas solidões. Teria estado ali o dia todo. Mas também sua fraqueza o traía. Lembrava-se de que era preciso apressar-se. Chegar ao trabalho. Quinta-feira.
Sem que eu existisse, o mundo estaria aqui. Voltaria outra manhã, que nunca é a mesma. O sempre das manhãs que voltam é que é sempre o mesmo. As pessoas sem rosto, o movimento das cidades. Manhãs do futuro, eu não aqui, o mundo ainda. Como dói sentir que a manhã já voltou.
Ainda em seu quarto, as coisas renascendo de forma obscura. Contorno dos objetos emergindo das trevas. A morte absolvendo-o para outra história entre o dia e a noite. Sexta-feira. Entre os edifícios, a alguma distância, o campanário da conhecida catedral remetendo às construções medievais. O tempo em que acreditava. Ocorria-lhe vagamente a melodia triste e consoladora que ouvira casualmente no dia anterior. Albinoni. E não sabia. Alba, precede a manhã. Alva é a realidade ante os vidros. E não há prova ou sinal mais flagrante de um vasto jogo de sombras. Um grupo de pombos ergueu-se de uma lateral da torre, descrevendo suavemente uma volta no ar, e seguiu com mil asas seu curso imaginário de círculos, em linha reta. Talvez um prenúncio de chuva. Lá embaixo, no pátio de outro edifício, um menino de óculos brincava com seu cão. Círculos e as linhas retas. Pateta, tão longe, em sua infância.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
40. Pateta – sequência
38. Para se pensar em crocodilos e borboletas – anterior
Imagem: Sheila Vaughan. Três figuras numa rua. 2010.
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