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Um par de amigos, um caso ímpar
“Não entendo, velho.”
Meu amigo, o Paulo Marcos, havia comprado um par de sapatos que depois demonstraram não lhe ter servido adequadamente, ao contrário do que lhe pareceu ao experimentá-los, na loja. Percebi que ele estava intrigado com isso.
“Não é possível…”, lamentava triste enquanto olhava os sapatos, um deles em sua mão, sendo examinado por todos os lados.
No dia da compra, tinha caminhado com esses sapatos “pra todo lado, velho, pareciam confortáveis e eram exatamente o meu número!”
“Talvez o vendedor tenha trocado por engano, na hora de embrulhar”, arrisquei.
Ele continuou pensativo. “Não é possível, velho…”, repetia quase murmurando, sem me ouvir, praticamente sem esperar que alguém lhe explicasse aquilo. Mesmo assim, praguejou contra o vendedor, arrematando que era por causa dessas coisas “que o mundo está nessa desgraça toda.”
Quando o Marcos Paulo, nosso outro amigo, chegou, o Paulo Marcos, quase sem paciência, lhe disse: “Toma, tá vendo esses sapatos aqui? Se servirem, fica com eles.”.
O Marcos Paulo pegou o par de sapatos, mostrou-se agradado pelo modelo e pela cor, enfim, pareceu-lhe muito bom produto.
“Vou levar, depois experimento. Se servirem, eu te compro.”
“Não, não precisa comprar. Se servirem, são seus, certo?”
Certo. O Marcos Paulo levou os sapatos. Resolvido.
Mas, ao contrário de ser esse o fim da história, trata-se do início de um episódio invisível do cotidiano que me atormentou por quarenta e um dias. Quarenta e um dias, velho!
Quase uma semana depois, tornamos a nos encontrar. O Paulo Marcos já esperava no barzinho, a primeira garrafa de nossa cerveja predileta pela metade, um fundinho no copo dele. Caí feliz na cadeira ao lado, gesto ao garçom para outro copo, e começamos a falar de sua ex-namorada, que, na visão dele, agora havia se transformado numa enorme piranha. Logo chegou o Marcos Paulo, outro copo. Brinde idiota, como sempre fazemos: a um time, a alguma mulher bonita que os três conhecessem (ou a partes dela) ou à própria cerveja, enfim, a qualquer outra coisa à toa que viesse à tona. O Marcos Paulo levou as mãos ao rosto, como se lhe houvessem anunciado a morte do governador ou uma notificação de despejo, ao ser perguntado se os sapatos lhe tinham servido.
“Puta madre que me pariu…”, exclamou baixinho enquanto deslizava as unhas sobre a cara, arranhando-se de leve. “Esqueci completamente, velho. Ainda não experimentei os sapatos. Mas estão lá, no canto do meu quarto, perto daquela estante baixa de…”
O Paulo Marcos serviu-nos a todos, sem espuma.
”Tudo bem. Vê lá se te servem, depois me fala.”
Dias depois, num horário de almoço, encontrei o Marcos Paulo e também entrei na brincadeira, querendo saber se lhe tinham servido os sapatos. Outra vez a surpresa, ele não se lembrara de experimentá-los.
“Essa nossa vida corrida, não é mesmo? Essa correria do caralho…”
Separadamente, fui à casa do Paulo Marcos devolver-lhe uns cds. Aproveitamos para abrir nossa cervejinha gelada na varanda e fofocar sobre alguns próximos, pois nós três éramos viciados em fofocas, que é um dos grandes prazeres da vida. Ele havia lido no Facebook, numa dessas mil postagens com frases e conselhos aos primatas humanos, que quem se preocupa com a vida alheia é porque não dava importância à sua própria, ou tinha carência de se comparar, ou tinha inveja ou… – e isso tudo nos rendia ótimas gargalhadas enquanto ficávamos relembrando picuinhas das vidas dos outros. “Essa gente careta do Facebook, repetindo bobagens dos outros e achando que aquilo tudo é cheio de sabedoria, quá, quá, quá, quá…” “Só faltou nos chamarem de serial killers…” E falando em picuinhas, perguntei-lhe sobre o Marcos Paulo e os sapatos.
“O filha da puta não me respondeu ainda,” falou tranquilo enquanto me enchia o copo outra vez. “Não quero saber daqueles sapatos, já comprei outros. Mas o cara, nem experimentar? Tem que dar pelo menos uma satisfação, porra! Olha, vou te contar, viu? É esse o problema da humanidade de hoje.”
Naquela noite, fiquei tentado a telefonar para o Marcos Paulo e insistir-lhe, rogar-lhe, implorar-lhe que experimentasse os sapatos, e que respondesse ao Paulo Marcos. Fiquei por um milímetro de pegar o celular para resolver isso. Mas, afinal, que cacete, o que é que eu tinha com aquilo? Nada.
Nada, mas não dormia. Vendo na TV o sucesso da missão da Nasa em Marte, imaginei os sapatos caindo de paraquedas no planeta vermelho. Não consegui mais tirar aquilo da cabeça. Outra matéria detalhava a crise financeira na Europa, o desemprego na Espanha, as dívidas dos bancos, e eu me perguntava como estariam as fábricas de sapatos por lá, além de visualizar uma multidão de sapatos mágicos marchando e protestando pelas ruas.
Perdi umas noites de sono, distraía-me no trabalho, tinha vontade de ir ao apartamento do Marcos Paulo especialmente para isso, para forçá-lo a experimentar os sapatos e dar uma resposta final ao Paulo Marcos, mesmo que nos esquecêssemos das fofocas e da cerveja. Não, eu ainda estava consciente do ridículo dessa minha atitude, que não pus em prática, para o bem de minha história pessoal – imaginava, em nossa roda de fofocas, esses dois rindo de mim por causa do amaldiçoado par de sapatos. Não, de jeito nenhum. Fodam-se.
Eu não queria, mas tomei um antidepressivo antes de dormir. Não queria, porque não estava deprimido. Só queria dormir. E me automedicava, muito entendido como sempre, apanhando algum comprimido cuja cor me agradasse e que não parecesse muito perigoso, era o bastante para ingeri-lo com alívio e prenúncio de bons sonhos.
No 35o dia, combinamos outra cerveja, um boteco novo que nos renovava as esperanças em dias melhores. Lá, no meio da conversa toda, novamente a surpresa do Marcos Paulo ao ser inquirido sobre os tais sapatos. Novamente a indiferença do Paulo Marcos. Mudança de assunto quase imediata. Copos se enchendo e se esvaziando. Outras coisas lhes interessavam, desde mulheres até curiosidades sobre umas faixas de nossas coleções de rock. Mas dessa vez eu não consegui voltar ao normal como eles, e minhas crises de ansiedade só pioravam. Por causa dos sapatos, claro.
“Pelo amor de Deus, Marcos Paulo! Pelo amor da Madona Santificada, você não experimentou aquelas porras daqueles sapatos ainda?!”, perguntei irritado, quase me levantando da cadeira.
“Ei, calma, fica frio, que isso, velhão?”, foi o Paulo Marcos quem me sossegou, pegando-me o braço.
“Que isso?! Que isso que a Nasa está explorando Marte, a Europa está quebrando a cara, o Supremo julgando a bandidagem da política, e você… você…”
“Esqueci, velho. Não deu tempo. Esqueci mesmo, cacete. Vou experimentar hoje, juro.”
“Então, por favor…”, falei disfarçando minha exasperação quase incontrolável. E por pouco não acrescentei: “Você está querendo me matar, é isso?”. Mas evitei a tempo.
Quase não prestei atenção ao resto da conversa, e aceitei dividir a conta com o número, ou melhor, o valor que me passaram, sem conferir nada.
Quarenta e um dias depois, falei com o Paulo Marcos enquanto lhe dava uma carona para o trabalho – o carro dele “sem bateria, velho, coisa besta de acontecer”, e isso nos rendeu outras fofocas sobre umas conhecidas nossas que não sabiam dirigir direito e que já haviam cometido gafes geniais ao se referirem a algum item da mecânica, além de uns trocadilhos impagáveis. Manhã muito clara, nós dois de óculos escuros, trânsito tranquilo. No mais, sem problemas. Tentando manter a calma, toquei o braço dele com certa energia extra que me escapava ao lhe perguntar:
“E então? O Marcos Paulo não experimentou os sapatos ainda?”
Minhas mãos apertavam firme o volante. Redobrei minha atenção no trânsito, esperando a pior resposta.
O Paulo Marcos me contou que sim, que tinham servido ao Marcos Paulo, que ele tinha ficado com eles.
. . .
Este conto e o próximo, A prometida história de fantasma, com os mesmos personagens, seriam os primeiros de uma série tratando da amizade entre os homens, seu cotidiano, seus interesses, usando uma linguagem acessível, tons de bom humor e mencionando atualidades.
Inconsistência dos retratos – Guia de leitura
A sereia suicida – anterior
A prometida história de fantasma – posterior
Imagem: Vincent van Gogh. Um par de sapatos. 1888.
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Comentários
7 respostas para “Um par de amigos, um caso ímpar”
Que angústia!!! E pensar que eles serviram…
Ótimo texto, claro e envolvente.Ah Polegatto! Achei incrívelmente bom: uma leveza, um cotidiano simples e tão encantador.
Somente uma mente sábia e um inegável talento, consegue fazer de uma situação tão corriqueira um texto envolvente, primorosamente elaborado e uma “gostosura” de ser degustado!
Ah, não, por favor, não me confundam com um sábio, nem sei ao certo o que é isso, sou até cotidiano demais. E gosto, sim, de usar esse cotidiano para compor meus textos, irresistivelmente.
Muito obrigado assim mesmo, fico contente que tenha gostado.
Muito legal ver neste conto, que o mundo masculino tambem tem seus momentos de ‘mulher’
Às vezes, é assim. Ficamos com uma coisa martelando em nossa cabeça, perdemos o sono, e …, precisamos (dependemos) da resposta.
Genial !!!….Este texto me arrancou a primeira boa gargalhada do dia….
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