Office in a Small City por Edward Hopper

Por quem o luto imprevisto?

Há um tempo para cada sentimento que se manifesta e que se dissipa.
É preciso que seja assim. Trata-se da saúde emocional da humanidade.

Vamos lá, você também deve ter tido uma experiência semelhante. E não? Tente recordar, registre-a. Era uma vez um gato xadrez… – começava assim uma velha cantiga, lembra? Você só quer ouvir, eu entendo. É uma boa opção. Ouvir é fácil. Sou sempre eu que tenho de contar tudo.

Ultimamente a sombra persistente de ser alguém e estar vivo tem me confiscado o sono. Mas que importa perder algumas horas de sono a quem já sabe de antemão a vida toda perdida? Por mais triunfante que eu seja, por mais forte que me acredite, espanta-me que serei certamente derrotado no futuro, vencido em mim mesmo, justamente pelo fato de ser o que tenho sido, um ser vivente. Todos os que vivem compartilham de minha derrota, pois são o que são. Basta isso. Para que se vislumbre, em cada um, o colapso.

Você também provou de um veneno infalível, eu sei. Sua vida também está passando. E hoje me diz, com razão, que natureza e universo são a mesma palavra muitas vezes. Quanto a mim, não parti desse patamar. Paguei o preço devastador de todas as transformações.

A vida é feita de música e guerra, ouviu o que ele disse? A música, algo dinâmica, mas sem perder a ternura, entra então em outro ritmo até diluir-se, tanto como hoje ocorre com os passos de Júlio Dias, seus sucessivos dias e… Outros poderão ir além daqui. Não eu. Mas caso lhe interesse, só por curiosidade, e antes que eu me esqueça: J. S. Bach, Prelúdio em mi menor, BWV 855, é o que se pode ouvir aqui.

Vestido e chapéu escuros, renda fina cobrindo-lhe o rosto, certamente de luto, ela o espera sentada, na pequena sala ao lado. Quando entra, ele a vê pelas costas, ombros e cabeça baixa. Pronuncia seu nome, e ela se volta, erguendo-se e entregando-se rapidamente: um abraço muito forte, movido por uma emoção e uma carência intensas.

“Era para eu encontrar você só quando estivesse bonita”, falando entre lágrimas. “Mas ele morreu, eu não pude evitar…”

Sem saber o que dizer, ele arrisca: “Mas você está muito bonita. Você é mesmo muito bonita. Quem morreu? Me diga.”.

“Não era para eu encontrar você assim…”

Ele toca o rosto dela, sentindo a renda suave, uns fios de cabelo escapando de presilhas invisíveis.

“Não tem importância. Não mesmo. Olha pra mim.”

“Eu não queria fazer isso. Você acredita?”

“Acredito. Mas você estava bem, estava se divertindo. Eu não me importo. De verdade. Não tem importância que tenha me traído. E afinal, quem morreu?”

No instante seguinte, ela está mais calma. Seu vestido agora é verde. Batem à porta: são três coreanos que, com gestos respeitosos, orientados pelo silêncio, lhe trazem presentes.

O sonho fora tão real e intenso quanto a emoção do abraço. Treze parecia querer voltar-lhe pela última vez. Se não a última, pelo menos a mais surpreendente. Por que aquele traje, por que o luto? Não se achar bonita associava-se à sua constatação de que, não estando imune à corrupção, ela não podia viver como outras tantas mulheres, sem evitar prostituir-se? Isso teria causado seu luto? Para ela, a possibilidade de um amor sincero havia escapado, e, mais amplamente talvez, essa esperança, definitivamente, teria morrido? Os coreanos, cujos presentes sugerem clandestinidade, dados os meios ilegais com que inúmeros de seus artefatos infiltram-se país adentro, são três: brincam de mostrar-se discretos reis magos ante uma jovem que já não pode confessar sua virgindade e que ainda não experimentou o estado de graça que acompanha a gestação de seu primeiro descendente.

Mas, como ele próprio havia dito a ela em sonhos, isso não tinha importância. Não tinha mais. Era preciso esquecê-la. Tudo se esquece, mais cedo ou mais tarde. Há um tempo para cada sentimento que se manifesta e que se dissipa. É preciso que seja assim. Trata-se da saúde emocional da humanidade. Questão de sobrevivência. Vida por seguir. Ou seria pior: ficaríamos amando uma mesma pessoa para sempre.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

38. Para se pensar em crocodilos e borboletas – sequência

36. Velhas novidades – anterior

Imagem: Melton Fisher. O véu negro. 1908.

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