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Homens (não tão) fortes à procura
Só depois de ter voltado pela quarta ou quinta vez aos mijadouros é que admitia estar perdendo o controle sobre sua lucidez. Enquanto urinava, tinha ânsias de vomitar, com o fedor morno daquelas latrinas. Paredes encardidas, riscadas à caneta ou a canivete. Rabiscos obscenos, frases grosseiras, desenhos malfeitos de pênis e vaginas, exagerados. Podia supor que um sujeito houvesse escrito ou desenhado aquilo uma vez, o mesmo homem que, em outra ocasião, teria destilado frases envolventes para impressionar sua doce amante. Bêbado, talvez. Da outra vez que estivera no sanitário, viu que alguém havia atirado um rolo de papel higiênico no vaso. De onde vem isso? Esse fazer e desfazer. O empenho em criar, o prazer em destruir. Que há em nosso íntimo em comum com o cosmo? Criar-se, destruir-se: até quando plagiaremos o universo?
Voltou à mesa, ouviu que um dos boêmios mais velhos, de pé ao seu lado, conversando com umas garotas da mesa mais próxima, falava algo sobre morte e vida, com certeza outra filosofia vaga, produzida pela preguiça e pela confusão, mas que as meninas pareciam assimilar com muita seriedade. “Ai, é o que sempre eu penso”, uma delas entrando na conversa. “O tempo para quando a gente para.”
Por que tenho de ouvir isso? Pareceu-lhe que qualquer coisa pretendia revelar-se a partir daquelas estúpidas palavras, algo como a agitar-lhe a memória, como quando se busca uma lembrança conhecida, mas subitamente inacessível. Sofreu um fino arrepio, como se algo de prodigioso estivesse por desencadear-se e alcançar-lhe o entendimento. Não era nada. Mas, por qualquer motivo, recordou-se de um vizinho brincalhão, um dos personagens típicos de sua infância, que costumava despedir-se de alguém com uma expressão característica: “Vá com Deus, vá com sorte. E felicidades até o dia de sua morte.”. Não. Não era nada.
“Não sou mulher dessas filosofias, não gosto de muita conversa inútil”, uma delas sorrindo com adorável espontaneidade, assim, de maneira sutil, mas praticamente desarmando o grisalho sentimentaloide.
Mas sim, voltava para incomodá-lo uma lembrança que podia jurar extraviada para sempre, a daquele jovenzinho solitário que furtivamente seguia a garota de vestido curto, ambos tendo acabado de deixar a choperia, em vias de encerrar-se a primeira fase da noite. Armado de coragem, ainda assim muito hesitante, ele a abordara com delicadeza, como via nos filmes, e, apesar de tudo, não podia crer, quando ouvira em troca, também em tom amável, talvez com pena de sua ingenuidade: “Você tá enganado, querido. Não sou mulher.”, voltando dois passos, pondo-se sob a luz para que ele visse seu rosto de belas proporções, mas com algo de rígido e velado sob a maquiagem: um rosto masculino. “Não brinca assim. Me dá uma chance. Vi você saindo, não resisti…” Ela parecia hesitar também, como se estranhasse ser o alvo de interesse de alguém, o que não se mostrava condizente com sua beleza. “Você bebeu?” “Não. Um pouco.” “Então, olha bem pra mim. Olha as minhas mãos. Os meus pés…” “Por favor… Por favor, não fala assim. Você é muito bonita. E parece tão triste…” “Olha bem. Você quer mesmo que eu te mostre mais?”, ela ainda com paciência. “Você é linda”, ele enquanto admirava seus seios sob a blusa. “Sei que você é de verdade…” “Você não vai gostar, tenho certeza. Agora vai dormir, vai, querido.” “Não fala assim comigo… Eu tô vendo que você tá triste.” “Tô sim. Tô muito triste mesmo. Vai pra casa, amorzinho. Não é a melhor noite pra nós dois. A gente se vê.”
O álcool parecia agravar o retorno de um sentimento confuso como aquele, de um momento não menos confuso, de uma constrangedora atração por aquela pessoa, ainda que ela lhe confessasse com tanta honestidade sua androginia. Sentiu uma urgente necessidade de contar tudo aquilo a quem mais próximo se encontrasse. Mas subitamente entendeu que não deveria perder seu tempo, se bem que não lhe importasse de fato perdê-lo, confiando a memória daquele encontro a Bruno ou a qualquer outro como Bruno, os Brunos que são os mesmos no decorrer dos tempos, buscando unicamente mulheres, em todas as gerações. “Não sou mulher dessas filosofias…”, o sinal que o despertara. “Não sou mulher…”
“Júlio velho, vamos ficar aqui feito dois boêmios amestrados, em fim de carreira?”
“Alguma esperança?”
“Não vejo uma mulher sozinha há pelo menos duas horas.”
“E aí? Bar do Tomás?”
“Não. Direto pro Fronteira.”
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
36. Velhas novidades – sequência
34. Já viu o prédio onde ela mora? – anterior
Imagem: Paul Klee. Magia dos peixes. 1925.
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