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Já viu o prédio onde ela mora?
Mas Treze, de alguma forma, atraíra-se por ele, vira algo diferente nele, o que nem sempre alguém notava. Pensa enquanto anda, anda enquanto pensa, nunca lhe faltara a resignada consciência de que não era um homem cativante, menos ainda dispunha de suficientes atrativos físicos para alegrar ou satisfazer o gosto de uma mulher, principalmente se ela já conhecesse muitos homens. Treze o observava especialmente, esperava que ele lhe dissesse algo, essa era a sua impressão. Bruno dissera que o endereço era verdadeiro. Pensa enquanto anda, não tinha forças para trazê-la ao seu mundo, que ele sabia nada tentador, como também não tinha forças, no momento, para, resumidamente, renunciar a ela. Anda enquanto pensa que deveria entrar ali. Também pressente que não entrará. Imagina a realidade dos minutos futuros, brincando de adivinhar o que fará em seguida: se há algo para o que não lhe resta qualquer talento é a premonição. Entrar ali, pensa enquanto anda, já bem próximo ao edifício de esquina onde ela morava, um belíssimo condomínio de varandas de vidro escuro e extensas laterais de pedra lisa, como a imitar o mármore, somente maculadas pelos cordames e suportes suspensos que amparam dois homens em serviço, empenhados em esfregar, com algum estranho líquido, aquela superfície como nova, não se podendo ver diferença entre o que acaba de ser limpo e o que ainda espera tratamento. Pensa enquanto anda mais lentamente, acercando-se do jardim de entrada, lugares assim, luxuosos, sofrem frequentes exercícios de manutenção, mesmo que não se necessitem deles, talvez os síndicos superfaturem as notas, há esquemas desses por toda parte, menor e maior escala, ou talvez os moradores sejam mesmo exigentes, a eles não faltará dinheiro para essa rotina mais ou menos com data marcada, passa-lhe por um momento a fachada salitrosa e com manchas de chuva do endereço que é o seu, por enquanto, assim como tudo dura um certo tempo, o lugar onde mora e onde hoje mora Treze, até alguns dias atrás esse novo endereço não existia para ele e sim para outros, os endereços são transitórios ou duram toda uma vida, o que muda é estar alguém vivo para habitar por muito tempo um mesmo lugar. Poderia tentar, quem sabe, perguntar ao porteiro algo como “Pode me dizer se no apartamento 135 mora…”, por exemplo, “… a Dona Raimunda Costa Pimenta?”, supondo ser um nome de certa importância, com os quais o funcionário estará habituado. E então ele lhe dirá “Não, lá mora uma jovem estudante”, isso se não lhe disser de uma vez o nome, “Senhorita Treze”, pareceria engraçado ouvir que pudessem chamá-la assim, mas também lhe passava algo que Bruno recentemente dissera, “Já viu o prédio onde ela mora?”, como referindo-se a um bairro de melhor classe, tendo-se em conta sua ênfase, e assim era. Mas se pudesse entrar ali, pensa enquanto olha a altura do edifício, imagina a surpresa de Treze ao vê-lo, descobrindo que alguém se interessava por ela apenas por ser o que era, aquela pessoa, aquela forma e imagem, aquele rosto de olhos atentos, aquela companhia de voz especial, e ainda que estranhamente ele não pensasse em sexo nesse momento, aquela mulher. Mas não estava preparado nem a amava. Nem o seu diário haveria de se transformar em uma interessantíssima e dinâmica trama de detetives. Ou teria de escrever, em seguida, que ela estava morta lá dentro, tendo se servido de substâncias letais. Gostou da sensação de estar dentro de um filme de suspense, imaginou os cabelos dela caindo a um só lado do rosto, sobre o travesseiro, perto dali uma boneca que ela conservava desde menina, eis que uma cena assim, tão sensível quanto piegas, já não se presta a um enredo de suspense mas ao castelo de cartas do mais enfadonho sentimentalismo, pois é, Júlio, você sempre estraga tudo.
“Sai fora, companheiro!”, grita-lhe um dos homens, de cujo balde esparge um líquido esverdeado que respinga na camisa de Júlio. “Isso é ácido!”
“É ácido!”, ajuda o outro, repetindo um gesto para que Júlio se afaste.
Enquanto se volta ainda ao edifício, torna-lhe a impressão, enquanto anda e enquanto pensa e enquanto se afasta, recordando Treze pela primeira vez, quase a certeza de que ela contava realmente quinze anos, e só naquela noite de ventos, após o encontro que lhe revelara seu verdadeiro rosto e até a viagem que buscaram juntos noite adentro, lhe teria aparecido mulher.
Nessa noite, Júlio adormeceu profundamente, mas por uns poucos minutos apenas. Então despertou de maneira difusa, tendo por certo que estava consciente, que o que vivera há alguns dias com Treze não fora um sonho, embora mantivesse os olhos fechados como para não perdê-la, e desejasse encontrá-la também em um sonho. Havia pouco, um trovão o despertara. Agora outro, mais próximo, confirmava alguma mudança. O tempo andava seco e abafado, mas já esses estrondos avulsos prenunciavam chuvas para breve. Pensou nas horas, imaginou que fosse mais tarde do que supunha, com isso recordando perfeitamente a voz e o rosto de Treze lhe dizendo que era mais tarde do que ele imaginava, temendo associar tais palavras à perda de Treze, temendo logo estar aplicando a mesma ideia à sua própria vida, também da primeira vez que ela lhe perguntara até que horas poderia ficar, talvez querendo saber se era ou não comprometido, o que ele só percebia agora. Lembrando-se ainda, com um traço de ternura: quando menino, acreditava que as pessoas mortas iam para o Céu, e lá era o único lugar onde todos podiam sorrir uns aos outros.
Em outra história, Treze espera por mim num jardim muito claro, sentada em um banco de ardósia, entre ligeiros azuis e verdes predominantes, vértice das trilhas de pedras recortadas que a cercam, a luz matinal em tudo diversa das noites que nos disfarçavam. Não me pergunte por quê: ela me aparece escrevendo em um caderno ou livro, algo que seja a um tempo as duas coisas. São parte de sua figura os cabelos de franjas lisas em redor do rosto, o vestido e as sandálias, o silêncio com que se veste para tecer seu diário.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
35. Homens (não tão) fortes à procura – sequência
33. Treze não era uma fada qualquer – anterior
Imagem: Paul Klee. Domos vermelhos e brancos (detalhe superior). 1914.
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