Office in a Small City por Edward Hopper

Mal dessas idades…

Eu me defrontava com trechos de outra profundidade.
Sentia percorrer-me um arrepio singular, do fundo da existência.

Mal dessas idades é estar sempre esperando. De outras também, ou será mal de todas as minhas idades, meu próprio mal transcorrendo ao fundo de todos os dias, caso eu o admita de uma vez, essa ingenuidade de que bem me envergonho. Mas… e os mentirosos intencionais? – aqueles para quem a normalidade consiste em iludir as pessoas com um milhão de truques, como os apresentadores de programas; os promotores de loterias e jogos de azar; os políticos, quando pretendem instalar-se nas cadeiras que lhes farão a fortuna; os religiosos, que funcionam inclusive como apoio de todos os demais embusteiros. Por que estes não se envergonham, já que são humanos como eu? Minha mãe, por exemplo, nunca me enganou: ela de fato acreditava em todos eles. Mas os apresentadores, sim, me enganaram. Os senadores e os deputados, sim. O papa e todos os vigários da Terra, pois são os que detêm o conhecimento histórico, as renovadas estratégias, os que sabem perfeitamente como se construiu e como se mantém, desde o crepúsculo da Antiguidade e os primórdios da Idade Média, cada fantasia de seu universo. A história não é mais um segredo. Mas os que ainda creem não pretendem conhecê-la. E ainda que eu passe sem nada dizer, sem nada denunciar, política e religião continuam sendo, não pela ordem, os melhores negócios do mundo.

De qualquer maneira, irritava-me que tantos não pudessem ao menos atinar com a importância da arte poética e da literatura como fator de transformação do mundo – assim como aos jovens parabenizam por lançarem um livro, não pelo que escrevem, e aos artistas velhinhos mais admiram pela frequência de sua atividade do que por sua obra, o resultado final de sua arte, que geralmente é um tédio. Quando eu ainda me considerava poeta, conheci uma garota que gesticulava e fumava muito, quase só conversava por gírias, e publicava dois livros seus por ano, além de organizar festas e eventos do grêmio estudantil. Ela se oferecia a publicar meus poemas no jornalzinho da escola, mas estranhamente isso me entristecia e me punha abatido: como a maioria das pessoas, ela não se preocupava com a poesia. Pretendia apenas publicar-nos a todos e, por sua vez, claro, empurrar-nos seus livros. Repetia que “o poeta é um compositor”. Era horrível. Nesse jornalzinho mal diagramado, havia barras horizontais grossas e finas dividindo as seções, e as imagens pareciam encaixadas à força, por alguém com pena de cortá-las adequadamente. Mundo cão, nem fale.

Logo a prosa me fez tropeçar em suas possibilidades. Verena acreditava em mim e dizia que, se acaso eu me destacasse um dia, os que me conhecessem pessoalmente duvidariam que eu houvesse me desenvolvido a partir de uma biblioteca tão irrelevante. Poucos livros me impressionam, sempre fui assim. Meus primeiros contos, dizia ela, revelavam tendências que ainda fariam de mim um demolidor e um satirista impiedoso. Mas, conhecendo meus limites, sei que não passo de um autor de baixa vendagem.

Assim que descobri a editora do Arcádio Raposo, não deixei de importuná-lo uma semana sequer, acreditando que, de alguma forma, alcançaria vencê-lo pelo cansaço.

“Senhor Raposo”, dizia eu confiante, primeira vez diante dele. “Tenho em mim um personagem que faria Raskólnikov parecer um estudante superficial e sem interesse.”

“Ah, sei. E onde está ele? O personagem, claro.”

“Ainda é cedo. Preciso que acredite em mim e apoie meus projetos. Ando tendo muitas ideias por esses dias, sabe?”

Ele torceu o nariz.

“Fácil falar. Onde estão os diálogos? As cenas, as frases de efeito… Escritores jovens são todos pretensiosos.”

“Dostoiévski também foi jovem. E pretensioso.”

No rosto impaciente dele, eu lia algo como: “Que mal fiz eu aos deuses todos?”.

“Preciso que o senhor confie em mim. Sei do que vive em meu interior. Tenho certeza que…”, eu falava, falava.

Entre isto e aquilo, creio que tenha cometido uma gafe impagável, quando lhe confessei que meus autores prediletos eram uma mistura de Cervantes e Maquiavel, além de Nelson Rodrigues e o padre António Vieira, bastava ver como ele se agitava com uma ansiedade nervosa, por pouco não ordenando que eu me retirasse dali. Mas eu queria mostrar-lhe as dez mil coisas e já havia rascunhado trechos sobre o escritório, capítulos chamados: “O bom escravo”, “O mau escravo”, “O sonho das pequenas atitudes”… Era muito jovem, já disse.

Aos poucos, fui eliminando o que considerava falho ou excedente na prosa de outros autores. Lembro-me de um volume de crônicas, emprestado por uma colega que o considerava lindíssimo, do qual transcrevo o parágrafo.

É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam molinhos, quase simples gordura. Outros duros e enroscados, como dois ou três fios.

O autor começa dizendo que é inútil falar sobre torresmos. E assim mesmo discorre sobre eles, com incontido lirismo. Isto, o que eu não assimilava: se ele próprio admitia a frivolidade disso, por que levava a cabo a descrição toda? (Eu não sabia ainda o que era a preterição.) Mesmo assim, o mundo não se altera porque alguém resolve escrever sobre almoços mineiros. De resto, não me interesso por torresmos. Mas aprendia dos grandes mestres. O desafio, a meu ver: contar a beleza sem me perder no lirismo dos que não souberam contá-la, também sem a crueza dos realistas intencionais. Passava a discernir objetivos pragmáticos de falsas veleidades, excluindo, entre outros, esses poetas que intitulam “Último poema” a um de seus desabafos – e continuam escrevendo, escrevendo…

Eu sou aquele que não terão libertado, que não será libertado, que se arrasta pelos bancos, em direção ao novo dia que se anuncia esplêndido, cheio de cintos salva-vidas, chamando o naufrágio.

Em compensação, toda vez que me defrontava com trechos de outra profundidade, de outro alcance, com certeza originados de intensos conflitos e febres secretas, sentia percorrer-me aquele arrepio singular, de um gênero especial, que eu supunha ter partido do fundo da existência. Daí por que insistia ainda em conhecer a literatura: havia algo a ser descoberto, ainda a ser explicado, e isso passava longe de qualquer exercício de redação com que se preenchiam infinitos livros e papéis de todas as espécies. As palavras de Samuel Beckett lembravam-me que o mundo não era apenas o que eu podia ver – embora há muito eu já desconfiasse disso. Mas é diferente quando alguém o repete. Quando alguém o torna a dizer. Não é?

A seta de Verena – Guia de leitura

 48. Onde não havia palavras – sequência

46. Versos versus mundo – anterior

Sobre o livro

Imagem: Paul Klee. Anchorage. 1928.

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