Office in a Small City por Edward Hopper

Herói sem rumo

Dentre as antigas aquarelas da memória e outros gestos de nuvens, tais são algumas das imagens que nunca se diluem.
Coelho me havia feito recordá-las quando anunciou que os instrumentos se unissem. Eu as revejo sempre que quero retomar a esperança.

“Corre, vai chamar todo mundo!”, ordenou-me o menino que comandava nosso time, com isso incumbindo-me de uma importante missão. O campo improvisado, onde jogávamos futebol, havia sido invadido por um grupo de meninos maiores, mais violentos, que por qualquer motivo gratuito, ou que não pude compreender, destroçaram a bola e humilharam alguns dos nossos à força. Disparei a correr travessa acima, dobrei uma ou duas esquinas, gritando pelos colegas que se encontrassem por perto, naquelas ruas, mas talvez nenhum deles estivesse em casa. Tratava-se de uma tarefa extremamente relevante: estávamos em meio a uma guerra, acabávamos de sofrer um ataque no qual fomos humilhados pela superioridade física do inimigo, portanto era urgente que reagíssemos. Eu estava completamente tomado por aquele intenso sentimento de urgência e responsabilidade, ouvindo em mim mesmo, enquanto corria, a poderosa música que a imaginação trazia de alguma outra parte, algo que por todo o corpo circulasse ardentemente através do sangue. Após ter dado a volta em vários quarteirões, tentando recrutar eventuais companheiros, voltei ao terreno que nos servia aos jogos. Ninguém mais por ali, e as irregulares porções de areia entre o mato rasteiro revelavam sinais de luta e pegadas disformes. Tornei a correr, em busca de reforços, fiz outras voltas pelas ruas próximas, pretendendo não desistir. Tudo em vão. Eu estava sem forças, sem ar, não conseguia continuar correndo, e me detive. De uma varanda junto à calçada, um casal de idosos me contemplava em silêncio, sem expressar nenhuma reação, apenas curiosos, talvez nem tanto. Amarguei uma opressiva sensação de derrota. Meus semelhantes mais velhos pareciam dizer-me, em sua mudez: “Não adianta, filho. Não faça nada. Não há como reunir a todos. Nem fazê-los ficar do seu lado.”. Constatei que estava sozinho. Voltei caminhando devagar, ainda arfando um pouco, observando como podia, com meus olhos ativos mas sempre míopes, cada minúcia do chão áspero à frente de meus pés.

Como pode, Augusto, tanto idealismo caber dentro de um menino tão pequeno? Naquele dia, pareceu-me estar a terra sob meus pés, como as terras de todos os tempos, num silêncio enorme. Dentre as antigas aquarelas da memória e outros gestos de nuvens, tais são algumas das imagens que nunca se diluem. Coelho me havia feito recordá-las quando anunciou que os instrumentos se unissem. Eu as revejo sempre que quero retomar a esperança.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

33. Treze não era uma fada qualquer – sequência

31. O centro em parte alguma – anterior

Imagem: Ivan Serpa. Sem título. 1961.

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