Office in a Small City por Edward Hopper

Versos versus mundo

De um lado, as palavras (que podem mudar o mundo).
Do outro lado, o mundo. Que não tem nada a ver com as palavras.

Eu alugava um pequeno apartamento que Verena ajudou a transformar. Não só com objetos. Não só o apartamento. Foi ela quem me incentivou a deixar os cabelos compridos e a prendê-los em rabos de cavalo, como eu passara a usá-los então. Enquanto me ensinava a manipular o elástico, eu lhe dissera tolamente que não conseguia imaginar Machado de Assis ou Graciliano Ramos com um cabelo daqueles. Mas ela me tranquilizou e garantiu que eu não era nenhum Machado e nenhum Graciliano.

Não se deve levar tudo a sério, não é mesmo? Uns antigos também diziam isso – e já se foram. Meus cabelos tornaram a ser aparados mais tarde, não como antes, tão curtos que fizessem lamentar os tufinhos traseiros do remoinho, porém de maneira mais displicente e prática, que aquilo de usar elásticos e rabos de cavalo também já tinha saturado os dias de semana, os dias úteis, e incomodado o bastante.

Os apartamentos, por exemplo, são apenas ambientes por onde a vida passa. As cidades que os contêm, paralelamente, são aglomerados de tais ambientes, poliedros formados por cubos de adequadas dimensões, por onde a mesma vida passa. Os países são porções de terra que abrigam os povos com suas línguas e costumes enquanto suas línguas e costumes também passam. Nosso planeta continua girando, e é por isso mesmo, por culpa de seu giro, que haverá de parar um dia, quando houver feito todo o tempo transcorrer. Agora, quanto a ser um Machado ou um Graciliano, nem morto.

Quando comecei a escrever versos, sonhava revolucionar o mundo, a sociedade, o pensamento humano, não sei para quê. Tudo em que eu acreditava na época me parece hoje algo incompreensível e obtuso, embora eu pudesse jurar que tais febres viviam e circulavam em mim tanto quanto o meu sangue. Hoje, eu trocaria tudo por umas noites quentes com Mônica – ou apenas por me deliciar um pouco com seus peitinhos. Ou por uns poucos dias de paz. Por alguma ideia simples, que apenas me servisse à calma. Mas, claro, isso já seriam grandes recompensas, felicidade demais para um homem. Na verdade, creio até que, por bem menos, trocaria tudo de qualquer jeito, tudo aquilo que uma vez podia jurar que era eu, que teria sido intensamente eu: aquele que escrevia e escrevia, senhor de intermináveis poemas de incansáveis versos – ou incansáveis poemas de intermináveis versos, tanto faz, cada um escolha como bem lhe aprouver, porque tudo isso já era.

Minha mãe sorria às visitas.

“Ele agora deu de escrever uns versinhos…”

Isso me punha furibundo. Então chamavam versinhos o meu trabalho mais significativo? E a minha poesia prestava-se a alimentar a falta de assunto das visitas?

“Não diga! Versinhos?”

O sangue aflorava-me à garganta, por pouco não me forçando a perder de vez a compostura. “Saibam as senhoras”, podia ver-me vociferando a elas, “que eu sonho com um mundo no qual a esperança seja supérflua!”

Pensava em arrancar os cabelos em seguida, na frente de todas elas, só para que vissem do que eu era capaz, só para provar-lhes que eu não estava brincando. Passava horas, noites inteiras trabalhando um único poema, incutindo-lhe ingredientes que poderiam abalar os alicerces da política e inquietar os povos de diversas nações.

Minhas tias serviam café.

“E então? Ainda escrevendo seus versinhos?”

Eu ia para o quarto arrancar os cabelos. E demorava a me acalmar. Ainda? Vão ver só, vou mostrar a todos… Mas mostrar o quê? Um longo poema “profundo”? Um romance com final surpreendente? Algo que não haviam lido ainda? Mostraria um novo Ulisses? Um texto de ponta-cabeça ou com qualquer formato subvertido, só para fingir que eu era inteligente? Um ego ferido é tão louco quanto um ego em paz. Quanto esforço e energia só para mostrar a esses fantasmas que me cercavam que eu podia ser bom em alguma coisa. Ser bom, imagine. Fodam-se.

Por vezes, eu ficava observando minha mãe, quando atenta à TV. Pensava nos valores que lhe ensinaram verdadeiros, no melhor e mais sábio procedimento ante uma realidade impenetrável e absolutamente complexa, cultivando, além de suas samambaias e avencas, a lassidão dos que não têm saída, como em tantas outras casas de nosso bairro, àquela mesma hora da tarde, início da noite, assistindo às telenovelas, repetindo em seu rosário suas orações semanais, passando à frente, como podia, a outras infinitas gerações, o longo sono da pobreza. Embora eu me arrogasse todas as características de um inflamado revolucionário, via estenderem-se meus dias na mesma casa, em companhia de minha mãe, e quem nos visse ali, entre vapores de café matinal e sombras de tardes, não apostaria três grãos de milho em que fôssemos tão diferentes. Eu, como ela, parecia também viver à espera de que algo mudasse, de que algo se iniciasse ou acontecesse em breve, contando com a estúpida esperança de que as coisas, quando acontecessem, precisassem de alguém que as fizesse acontecer, precisassem acontecer a alguém, pois, em contrapartida, nada surtia de concreto a ousadia de meus tempestuosos versos, e o mundo amanhecia o mesmo, visto pela janela, pela perspectiva da rua estreita, e pela tela do televisor.

A seta de Verena – Guia de leitura

47. Mal dessas idades… – sequência

45. Adeus, Águas Claras – anterior

Sobre o livro

Imagem: Lars Justinen. Inspiração.

por

Publicado em

Leia também:

Comentários

Comentar