Office in a Small City por Edward Hopper

Adeus, Águas Claras

A chuva que caiu à tarde antecipou nossa partida em um dia.
Romão dirigia um velho sedã de interior espaçoso. Verena ia ao seu lado.

Edna de Araraquara. Girassóis. 2007. jpg.Que não se depreenda de meus escritos um clone de minha pessoa, aparentemente humano, mas sem sangue, sem carne, propenso a desejos metafísicos mais do que a desejos naturalmente mais intensos e verdadeiros como, por exemplo, o de possuir Verena. Como o de possuir Mônica. E até mesmo Sylvia, essa apaixonante jovem louca, caso conseguisse atravessar o tempo e encontrá-la sozinha. Que não se confunda o personagem igualmente vivo com uma sombra sem tempo, esquivando-se por trás das palavras, do texto dividido em parágrafos, em capítulos, da página tal qual pode ser vista a pouca distância, uma mancha retangular centralizada sobre o papel, formando cadernos, e estes fazendo um livro, objeto de manuseio e de guarda, outro exemplar entre uns milhões, e até onde se crê, por amor à verdade, desnecessário. Que não se… Mas veja-se a que ponto chegamos. Já estou eu discursando em tom de conselho, feito um poeta parnasiano, um pregador de púlpitos ou algum senador da República. Ainda há tempo, não desistirei. Não desistirei de tentar salvar-me.

A chuva que caiu à tarde antecipou nossa partida em um dia. Romão dirigia um velho sedã de interior espaçoso e assentos inteiriços, cujo porta-malas teve de ir aberto, por causa da bagagem. Verena ia ao seu lado. Eu, no assento de trás.

A chuva foi aos poucos amenizando, e então fez-se um crepúsculo de tons fulgurantes, tão logo o dia se fechava e a noite abria, como se as nuvens ardessem em chamas, mais um último arco-íris vertical e interrompido, que se isolava do resto da planície. Puxei um papel, prevendo alguns versos, mas algo me fez voltar atrás. Tornei a guardá-lo entre os outros, tantos papéis potencialmente versos, anversos e reversos, amarrotando-os a todos dentro de minha velha pasta, sem a menor vontade de arrumá-los, pois começava a perceber: menos escrevia, mais me sentia próximo à vida.

Na cidade, trocamos endereços.

“Gostei muito de ter conhecido vocês.”

“Também gostamos de você, cara”, disse Romão cumprimentando-me através do assento.

Fora do carro, mala na mão, eu disse a Verena que ela havia me impressionado muito. Antes de um beijo, confessou-me – quero crer que sem ironias – que também se impressionara comigo. Registre-se.

A seta de Verena – Guia de leitura

46. Versos versus mundo – sequência

44. O gineceu reconquistado – anterior

Sobre o livro

Imagem: Edna de Araraquara. Girassóis. 2007.

por

Publicado em

Leia também:

Comentários

Comentar