Office in a Small City por Edward Hopper

Por que deixar rastros?

A vida é sempre uma transição, mas em alguns casos isso parece mais intenso.
Os poetas já nascem derrotados, vencidos por uma realidade que impera contra sua sensibilidade para ninguém.

Mais um dia pela frente. Nada para fazer. Cândido e Clemente queriam ver o rio ainda uma vez, antes de partirem no dia seguinte, não sei por quê. Consegui convencê-los a me deixarem sozinho, queria escrever uns versos e coisa e tal, importa é que eles acreditaram.

Quando sumiram de vista, deixei a barraca também e saí, rumo a um lugar qualquer. Fiquei andando pelas redondezas. Ah, as redondezas… Eu sempre girando, fugindo e fingindo, distraindo a mim mesmo. Continuei bravamente, tentando esquecer os minutos que formavam as horas, tudo isso só para ver quanto tempo eu aguentava ficar sozinho, melhor dizendo, ficar sozinho sem me entediar amargamente comigo mesmo. Alguns costumavam aconselhar que nos detivéssemos um pouco, que estancássemos nossas correrias sem sentido, a fim de inspirar, eventualmente, o perfume das flores. Mas flores eram o que menos se via por ali, embora houvesse muito mato. Fiquei pensando que a história se passava como sempre, acontecendo minuto a minuto, e só seria conhecida no futuro, que a história da humanidade estava o tempo todo se engendrando por toda parte, menos ali onde eu estava, enquanto eu me remoía, sem fazer nada, naquele fim de mundo. Procurei uma árvore na qual pudesse registrar o nome de Verena. Essa bobagem de adolescente tardio logo se desfez, não por conta de meus sintomas de iminente maturidade, mas porque me lembrei, num instante, de que não dispunha de nenhum objeto de corte, um canivete ou um estilete, por exemplo, como também não estava determinado a usar as próprias unhas, meu amor não chegava a tanto. De qualquer forma, imaginava os desdobramentos disso e o texto, em alguma página do futuro:

Aqui, neste plácido lugar, o poeta deixou sua marca, inscrevendo em um tronco de árvore o nome de uma de suas grandes paixões, com certeza sua amante, cuja verdadeira identidade permanece um mistério para os biógrafos e sobre quem se dá pouca notícia.

Pensei, com admiração, que Verena, como tantos outros, não parecia preocupada em deixar traços de si mesma, não se importava em passar pela vida sem deixar rastros, não dava uma moeda velha por isso. Mas eu, poeta congênito, pretendia deixar rastros e astros, engrandecer o patrimônio cultural, transmitir a estética da poesia às futuras gerações e… – quase vomitei. Não sei por quê, já que eu não tinha comido nada pela manhã. Ficou um pouquinho de uma gosma azeda só na boca, engoli de volta. Isso de Verena não se preocupar com a posteridade me encantava e me entristecia ao mesmo tempo. Tudo bem, eu vou cantá-la em versos. Podem cortar a árvore, atirar fora o canivete. Porque ela será imortal. Os leitores do futuro… Cuidado, de novo: eu não parecia estar bem de saúde – algum distúrbio estomacal talvez. Na verdade, sendo o mais sincero possível, minha vontade maior, nesse dia, era morrer.

Subi então uma pequena encosta, por preguiça de escalar outra mais alta, e fiquei olhando tudo o que podia, ao redor. Verdes próximos e azuis distantes. Horizonte, colinas, porções escuras, árvores e a falta delas, tudo físico, concreto, real. O tempo existe de alguma maneira, fazendo-se notar no envelhecimento das células ou no simples giro do planeta. A psicanálise costuma associar esses bosques dos contos infantis a certas fases de transição, quando o indivíduo se entende perdido. A vida é sempre uma transição, mas, em alguns casos, isso parece mais intenso, pois os poetas, os autênticos poetas, já nascem derrotados, vencidos por uma realidade que impera contra sua sensibilidade para ninguém. Eu não queria admitir que fosse um deles, essa vaidade não compensava mais. Porém, tinha a impressão de que vinha me encantando e sofrendo assim desde a primeira infância, predisposto a participar do mundo apenas com essa ridícula parcela de minha pequena tragédia pessoal. Afinal, esses arranjos de árvores, a que chamam bosque ou floresta, me atraem misteriosamente. Como se desde sempre eu estivesse perdido.

A seta de Verena – Guia de leitura

44. O gineceu reconquistado – sequência

42. Mais uns dias, por que não? – anterior

Sobre o livro

Imagem: Tom Thomson. Brotos de bordo. 1917.

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