Office in a Small City por Edward Hopper

Como cães farejadores

As infâncias parecem não envelhecer nunca. Júlio repassa retratos antigos: ali estão seus pais, seus tios e primos de seus pais, todos ainda crianças. Hoje, essas crianças não existem. E aquele mundo que as cercava, que era tudo, magicamente desapareceu.

“Ei, moço!”, a mulher de rosto redondo e dentes irregulares, de sua barraca de bijuterias, a mais próxima, agitando-lhe um gesto para que esperasse. Um vento repentino parecia acompanhar essa surpresa, ou porque era só o fim da tarde, com seus conhecidos sinais. Júlio voltou-se sem compreender. Viu aproximar-se o homem calvo, óculos retangulares e estreitos, que acabara de lhe vender a pequena arca porta-joias.

“Algo errado?”, Júlio não correspondendo ao sorriso dele.

“Não”, o homem só um pouco ofegante. “Não. Eu só queria ter certeza… Você se lembra de mim?”

A feira de artesanato estendia-se pelo espaço possível da praça, de maneira que os passeios faziam-se estreitos entre as barracas cobertas e as armações mais simples, por vezes um amplo tapete recoberto de minúsculos objetos, tendo os visitantes de acotovelar-se quase o tempo todo, sendo o sábado movimentado, especialmente quando dois, entre muitos, detinham-se um frente ao outro, como se dava então, com aquele rapaz intrigado, segurando pateticamente seu embrulho, e aquele homem sorridente, cujos óculos, como miniaturizados, permitiam-lhe fitar ou não através de suas lentes, mediante um rápido e quase imperceptível movimento dos olhos.

“Seu nome é Júlio”, o feirante apontando-lhe discretamente um dedo, entre a afirmação e a dúvida.

“É. O senhor me conhece?”, Júlio sim, certamente em dúvida.

“Da última vez que me viu, você era ainda um menino. Um rapazinho começando a ser gente. Já faz bem uns anos que me mudei. Puxa, e como faz! Olha o seu tamanho…”, estendendo a mão ao aperto que Júlio com ele dividia enquanto se perguntava em silêncio: de onde?, como me conhece?

“Conheci seu pai. Também fui amigo do seu tio, irmão dele. Somos conterrâneos, Júlio. Júlio Dias.”

Um levíssimo pulsar, um golpe de sangue quase imperceptível. Mas, o que fosse, causava-lhe agora uma alteração também invisível, o que começava com a saliva difícil de descer, entre esforços de memória e eletricidade, revisão acelerada de imagens e sons de vozes, ruídos característicos de uma cidade e de um tempo, parecendo-lhe algo espantoso que aquele tempo, ou outro tempo passado qualquer, não mais transcorresse.

“Eu agora me lembro do senhor”, mentiu. “Mas ainda pouco.”

“Me chamo Amâncio. Eu morava perto da estação. Do lado direito, o do moinho. Acho até incrível eu ter reconhecido você depois de todo esse tempo, mas alguma coisa eu vi, e vi que era você”, apertando-lhe a mão ainda com entusiasmo, tocando-lhe com a outra o ombro. “Da sua família, o que me conta? Seu pai ainda vive?”

Então esse homem calvo, pele rósea e aparência desgastada, fazia-se subitamente interessado, disposto a demorar-se por ele, por Júlio, declarando-lhe amizade por seu pai e por seu tio, e o que isso alterava? – era o que ele não podia deixar de se perguntar em segredo. Júlio o examinava fingindo simpatia, no fundo constatando mais uma vez, por mais esta vez, como eram estranhos os humanos, e por que necessitavam tanto dessa identificação, uns com os outros, reconhecendo-se uns aos outros, rastreando-se, enfim, como cães farejadores, até fazerem surgir uma oportunidade de compartilhar uma cidade, uns vizinhos, uma rua, uns casos, por vezes uma palavra e uma frase, por vezes um crime, tudo isso apenas acrescentando mais tempo sobre o tempo, acelerando o presente a outro passado aparentemente necessário, mas, por si só, dispensando qualquer necessidade de resgate. Num fulgurante e vertiginoso estreitar de pálpebras, Júlio viu apresentarem-se à sua frente inúmeras pessoas e manhãs e risos e chamamentos, mas que não se faça exagerada uma descrição dessas, apenas são peças que a memória prega a toda pessoa, e tais processos nada têm de mágicos.

Ajudando o avô, que serra varas de pesca, junta os talos sem proveito na carroçaria de seu caminhãozinho de madeira, para levá-los dali. Juntos, às vezes perseguem uma ratazana. Os pequenos trabalhos e as improvisadas brincadeiras se confundem, que tudo é encantado nessas manhãs sem sombra, enquanto não surgem novos dias em que homens vestidos com ternos vêm para levar as coisas embora, menos o caminhãozinho, que ele esconde prudentemente sob sua cama, sem perceber que eles só tomam o que consta daqueles papéis que suavemente se agitam entre suas mãos, não mais que o necessário para remediar dívidas que seu pai tem contraído misteriosamente.

As infâncias parecem não envelhecer nunca. Júlio repassa retratos antigos: ali estão seus pais, seus tios e primos de seus pais, todos ainda crianças. Hoje, essas crianças não existem. E aquele mundo que as cercava, que era tudo, magicamente desapareceu. Seus pais não possuem patrimônio, habitam uma casa alugada a um tio de sua mãe. Assim mesmo, todo o local lhe pertence em segredo: a rua até onde pode percorrê-la, as pitorescas travessas, a entrada do bosque, um crime que as famílias da vizinhança tentam esconder dos filhos, a casa da moça que estranhamente o atrai, os cães e os gatos, cada qual com seu endereço, todas essas coisas acontecem e se dão a seus olhos enquanto lhe é permitido viver ali. Contudo, hoje mais lhe pertencem – que já não pode removê-las de sua memória.

Enfraquecido, prestes a cair sobre si mesmo. Os lugares o adoecem. Não suportará passar por eles novamente. Quase realiza, no instante seguinte, o que sua vertigem lhe aponta, imperiosa: cair de joelhos, depois com as mãos apoiadas no solo, a cabeça vencida. Por um fio, não pedir socorro ao dia claro. Não pedir ajuda a todos os que vivem. Sabe que nunca passará por aquela mesma quaresmeira sem chorar.

A voz do comerciante, a feira ruidosa ao redor: “Parece que foi ontem que despejaram seus pais da casa junto ao bosque…” Não foi ontem. O dia é o mesmo. Apesar de alguns terem morrido. E os gatos e os cães haverem se substituído no tempo. E os segredos da vizinhança terem sido esquecidos ou drasticamente revelados. As ruas e o seu corpo adulto, o dia, aquele dia em maio, era perfeitamente o mesmo. Mãos firmes, retesadas, ao redor do embrulho que retém quase junto ao peito, certificando-se de sua realidade. Coração golpeando-lhe sangue. Até quando? É preciso apertar mais, precisa ter certeza. Para onde foram aqueles dias todos? Os dias se somam. Os dias se repetem. Os dias existem, existem!

O que ele está dizendo? Precisava prestar atenção. Como disse, senhor? Mas nota que não articula as palavras, apenas as imagina, enquanto o homem à sua frente continua revendo fatos e imagens. “… que ele morresse daquela maneira tão horrível, nós todos lamentamos muito…” Está falando agora sobre seu pai, certamente. Júlio sempre soube que ele iria morrer, como morreriam todos, mas nunca acreditou que ele pudesse morrer, mesmo que seja difícil compreender isso. “… com as perguntas que ele costumava fazer…” Perguntas? Que tipo de perguntas? Coisas como: por que nós temos que viver, se sabemos que tudo vai passar? E também: por que nós lutamos por tudo, se sabemos que vamos perder tudo? Sim, sim, Júlio as conhecia a todas, todas essas perguntas, não era preciso que alguém as recitasse outra vez. Oscilava entre a concretude e a abstração, quando percebeu que o outro o mirava mais diretamente nos olhos, esperando talvez uma resposta a essa interrogação recente, o que teria dito, agora mesmo, esse velho conterrâneo afinal? Que parece dizer-me algo com os olhos, desconfiado, captando, entre os tons de meu silêncio, algum sinal de descrença, isso é o que agora o faz observar-me com surpresa: “… por intervenção divina, não é possível que você não acredite em Deus, não é?”.

Júlio agora passa a se deter sempre mais sobre a estreita ponte do córrego central, que lhe separa a escola do caminho de casa. Observa o fluxo das águas, entre os feixes cintilantes, desviando-se de pedras, saliências de raízes e restos de lixo, quando o assalta, ante o velho vendedor de artesanatos, uma estranha dúvida, a um tempo irrisória, por outro lado significativa, apenas por apresentar-se-lhe como dúvida, onde não as haveria, que era não saber mais com certeza da direção que tomam essas águas, aquelas águas. Ainda em curso, sem que delas se recordasse durante a sucessão de estações que formaram esses anos todos, que formaram essas quase duas décadas todas, não mais em curso. Porém, o córrego sim: o rio que atravessa a cidade interiorana e a parte ao meio como um denso fio espelhado e como antes e como sempre. Júlio é que não mais se vê sobre as pontes. Não mais se encontra ante o fluxo ancestral. Não mais enxerga o vulto refletido à sombra avulsa de si mesmo, não mais dispõe desse espelho. “Estranho…”, parece ditar ao fundo sua incerta memória. “Sempre pensei que essas águas corressem em sentido contrário.”

Impressionou-me, a princípio, a coincidência de eu haver sonhado com meu pai apenas uns dias antes desse encontro. Mas, como tantas vezes não se fazem as associações, dessa vez se fizeram. Você vê que não só nos livros se aproveitam tais fatores de convergência do acaso, como duas extremidades se tocam ou se enlaçam, dando-nos outra ilusão de sentido: eles também ocorrem na realidade.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

27. Não apagou um agora mesmo? – sequência

25. Treze descuida-se de um segredo – anterior

Imagem: Liu Mao Shan. Paisagem urbana.

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