Office in a Small City por Edward Hopper

Os três patetas sem violência

Algumas latinhas nos puseram a pique.
Dormimos com os cobertores trocados, nas posições mais incômodas que se pudessem conceber em uma barraca daquelas.

Mais dois nomes, vá lá: Cândido e Clemente. Esses dois… Cada um deles, como dizem, uma flor de pessoa. Cândido Rosário Cruz e Clemente da Trindade. Identificavam-se comigo, porque também eu era jovem, ingênuo, sem iniciativa, usava calças de tergal e queria ser amigo de todo mundo. Eram do tipo sem assunto, desprovidos de quaisquer características marcantes, criatividade ou subversão, pessoas das quais, por não nos ocorrer algo mais consistente que se diga a respeito, definimos como seres humanos maravilhosos. Espíritos de luz. Flores de pessoas.

As férias deles coincidiram com as minhas. Cândido tinha uma barraca. Clemente sugeriu que fôssemos ao interior, ao vale onde se realizaria o Festival das Águas Claras.

“Adoro música”, animou-se Clemente, um pouco alterado. “Ai, adoro!”

Cândido conseguiu emprestada a perua do pai, uma Veraneio com um para-lama arranhado, bem esfolado por alguma forte manobra malsucedida; e eu, um mapa rodoviário que nos pregou muitas peças.

“Vamos chegar, se Deus quiser”, garantiu o motorista Cândido Rosário Cruz, logo que saíamos de um sítio onde nos havíamos enfiado por erro. “E antes de anoitecer!”

Anoiteceu. Estávamos bem perto. Quando avistamos as luzes das lanternas, os fogareiros e as barracas, Clemente persignou-se, suspirou um dramático e reconfortante “graças a Deus”.

As estacas zombaram de nossos esforços, e a escuridão não ajudou muito, mas enfim botamos a assimétrica barraca de pé. Não encontramos onde tomar banho – era o rio, soubemos depois – como também, por falta de habilidade que nos competia aos três, ficamos às voltas com o fogareiro, que nos venceu por essa noite, forçando-nos a comer salsichas de supermercado, o que secretamente considerei um grande resultado. Clemente lembrou que, na pior das hipóteses, poderíamos caçar algum pequeno animal, o que nos fez mais tranquilos. Abrimos cerveja em lata, erguemos um brinde às férias, à temporada do festival e à viagem que acabávamos de levar a cabo com sucesso.

“Vou beber pra caramba!”, avisou Cândido.

“Quero me encharcar!”, ajuntou Clemente, decidido. “Ai, acho que vou morrer!”

“Vamos todos”, disse eu calibrando a voz e tentando esconder minha felicidade.

Algumas latinhas nos puseram a pique. Dormimos com os cobertores trocados, nas posições mais incômodas que se pudessem conceber em uma barraca daquelas, como eu disse, algo assimétrica, tão estreita quanto ilusoriamente larga, sua forma devendo-se ao resultado final da união de nossas forças – de maneira que, quem de longe a avistasse e mais bem nos conhecesse, poderia senti-la, digamos, como um membro do grupo, porque no fim acabaria dizendo: “Ali está, é aquela! Aquela é que é a barraca deles.”.

A seta de Verena – Guia de leitura

38. Os jovens peregrinos e o profeta – sequência

  36. Fraudes por uma boa causa: a minha – anterior

Sobre o livro

Imagem: Almeida Júnior. Paisagem do rio Piracicaba.

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