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Camus – O estrangeiro
Ele foi o mais jovem ganhador do prêmio Nobel. Em seu país natal, a Argélia, cresceu num ambiente de guerra, fome e miséria. Nesse seu breve romance, expressa uma maneira ousada e perturbadora de se ver o mundo. O personagem central, Mersault, é cativante em sua neutralidade. Culpou o sol pelo assassinato de um homem e acabou sendo condenado por não ter chorado no enterro da mãe. Tudo que se desenrola nessa narrativa é tão real que chega ao absurdo antes que possamos percebê-lo. O trecho que segue encerra a primeira parte da trama, quando Mersault, caminhando pela praia, após um almoço com a namorada e com uns amigos, encontra um homem suspeito deitado sob um rochedo, com a cabeça à sombra.
O queimar do sol ganhava-me as faces, e senti gotas de suor se acumularem nas minhas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que enterrara mamãe, e, como então, doía-me sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam juntas debaixo da pele. Por causa dessa queimadura, que já não conseguia suportar, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estupidez, que não me livraria do sol se desse um passo. Mas dei um passo, um só passo à frente. E, desta vez, sem se levantar, o árabe sacou a faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina fulgurante me atingisse na testa. No mesmo instante, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de repente pelas pálpebras, recobrindo-as com um véu morno e espesso. Meus olhos ficaram cegos, por trás dessa cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da faca sempre diante de mim. Essa espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte, em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas à porta da desgraça.
Albert Camus, O estrangeiro.
Conheça outro nome da literatura francesa moderna, autora de A elegância do ouriço, e sua sensível visão de mundo.
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Comentários
5 respostas para “Camus – O estrangeiro”
Albert Camus não é mais o mais jovem ganhador do Prêmio Nobel, ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura com apenas 43 anos de idade, em 1957, no entanto, muito velho em comparação com a recente ganhadora do Prêmio Nobel da Paz deste ano, Malala Yousafzai, a ativista paquistanesa que luta pelo direito à educação das jovens muçulmanas, de apenas 17 anos.
Verdade, Octavio, eu deveria ter especificado que era o Nobel de literatura. Valeu pela observação. Abraços.
Há algum tempo, li em na revista Galileu uma matéria sobre “da onde vem o mal?” e descobri que cientistas analisaram soldados americanos durante a guerra no Iraque e descobriram que a constante exposição ao sol, deixava-os mais violentos. No mesmo instante lembrei de Mersault colocando a culpa no sol pelo crime que cometera.
“O estrangeiro” tem-me sido recomendado por várias pessoas, mas parece mentira, que ainda não li-o.
O seu blogue é muito bom. 1 abraço e excelentes leituras.
Obrigado, Miguel.
Também me devo algumas leituras que me despertam interesse. Estou terminando “O vermelho e o negro”, de Stendhal, e quero agora pegar (finalmente) “O homem sem qualidades”, de Robert Musil. Vamos ver…
Grande abraço.
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