Office in a Small City por Edward Hopper

Ana, Dulce, Treze, Cátia…

Já perdia quase inteiramente a convicção, durante tanto tempo alimentada por seus colegas de estudo, de que era intelectualmente bem-dotado, o que eles confundiam com muito interessado.
E suas perspectivas haviam declinado a um estranho silêncio.

Ana. Em meio à minha incapacidade para romper o tédio, minha quase imobilidade completa, algo como se a inércia contaminasse crescentemente minhas ações e qualquer palavra por nascer, como se forjasse uma espiral de silêncio que se autoalimentava, Ana voltou o rosto rapidamente em minha direção. Sentado ao lado dela, eu me via de cabeça baixa, indeciso, constrangido por minha falta de jeito, minha falta de assunto e tantas outras faltas que muitas vezes afastaram, de minha proximidade, uma mulher. Ana beijou-me umidamente, com movimentos de mesmo ritmo, lábios consistentes, como se me prendesse a boca por um instante e a possuísse presa à dela, mesmo quando me libertava. Eu apenas vivenciava, excitado e nervoso, essa mágica surpresa, graças a ela, graças a Ana, à sua decisão, à sua vontade: meu primeiro beijo.

Não sabia quanto, mas pouco tempo havia se passado desde que começara a soprar Treze até quando entendeu que pareciam sentados à mesma mesa ou até mais próximos do que se estivessem dividindo a conta. Também até quando se lembrou de que, além deles, havia mais gente no bar – e não eram poucos, como demonstrado anteriormente. Entre os mais próximos, Bruno, em um de seus silêncios quase histéricos, desses que o faziam absolutamente imóvel, picando com o palito os queijinhos sobreviventes, um gesto automático, como se usasse o braço de um ciborg, enquanto todo o resto de seu corpo (e rosto) se fazia estátua. Fixando em Júlio o olhar resultante de tal imobilidade, observando-os, a ele e à garota que lhe sorria, quase com preocupação, de uma maneira especial e atenta. Quase incisiva, que não de seu feitio. Júlio diria até inquietante.

Em resposta ao conhecido universalismo de Platão, Ockham via os ideais como simples palavras, considerando verdadeiro apenas o perceptível. Acreditava que as teorias não deveriam ser multiplicadas sem necessidade, pois normalmente as hipóteses mais concisas, também as mais simples, posteriormente demonstravam-se mais próximas da verdade. A chamada razão de Ockham é hoje fundamental para todo segmento da filosofia científica. Por que estou dizendo isso? Ora, a relação é evidente: Treze me inspirava uma agradável simplicidade, fazendo esquecer as desencontradas considerações que normalmente me confundiam em noites assim. O mais perto da verdade. Se estou sendo sincero? Vamos lá. Pense por si mesmo.

Atualmente, as capas dos livros alcançaram uma primorosa qualidade gráfica, tanto técnica quanto artisticamente, o que também é resultado de uma forte concorrência, de um aumento significativo de títulos, editoras e autores. As capas constituem uma exposição à parte. É possível deter-se por muito tempo, com a única finalidade de apreciá-las. Mas logo ele se distraía outra vez, mesmo com um livro à mão. Ainda na noite anterior, anotara em seu diário que os periódicos, em uma certa disposição, lhe traziam o dia nublado e a imagem do menino junto aos desenhos, o momento de glória, a nuvem avançando sobre o rosto, quase recordava as palavras com exatidão, agora protegido pelo ambiente fechado.

Já perdia quase inteiramente a convicção, durante tanto tempo alimentada por seus colegas de estudo, de que era intelectualmente bem-dotado, o que eles confundiam com muito interessado. E suas perspectivas haviam declinado a um estranho silêncio. Perdera intencionalmente o contato com amigos e conhecidos de sua cidade, relações que bem poderia sustentar, por um meio ou outro, e que talvez o mantivessem vinculado a alguma conhecida porção de imagens terrenas ou a um reconfortante pedaço de céu sobre sua cabeça. Assim, por sua atual decisão, começava a restar de imagens passadas – a sombra em um portão de ferro, a curva da água em um repuxo, o estreito bebedouro de cavalos, as pedras úmidas desenhando o adro da velha igreja ou a escadaria do escritório onde trabalhava seu pai – apenas as palavras de um dia tê-las vivido. Mas por quê? Para que serviam? O que o impulsionava a tais e tais atitudes, de uma certa fase em diante? Algo se havia transformado em um sentimento que lhe era antes desconhecido e que parecia formar-se como aos poucos se forma um mingau que cresce ou a água que ferve ou o algodão-doce nas mãos do simplório vendedor que sorri às crianças, sem saber que os traumas e os fios de açúcar, como os fios da cuidadosa aranha, nutrem uma teia que as cercará no futuro.

Voltou o livro à ordem, continuou passeando calmamente entre as estantes da imensa livraria. Então, como se automaticamente se acionasse um silencioso dínamo, emergiram de sua neutralidade as imagens de um sonho, vivido anos atrás, tão claramente como se a memória as projetasse diante de seus olhos, e alguém que o visse em um momento assim poderia jurar que era essa a tal nuvem a que se referia e que tornava a encobrir-lhe a face. Entra com seu pai em uma livraria tradicional de sua cidade, onde os velhos volumes tornaram-se madeira, de tanto remanescerem nas mesmas estantes. Vê, por trás de um vidro, um pesado tomo, em formato grande, que subitamente passa a lhe interessar muito. Entusiasmado, mostra-o ao pai: trata-se do quinto volume de uma coleção que tinham em casa. A coleção consistia de quatro livros ilustrados, uma enciclopédia adaptada para adolescentes, com artigos sobre inúmeros assuntos. Com o tempo, algumas imagens desapareceram de suas páginas, e ele nunca mais as encontrara – um menino deitado sob uma groselheira, o rosto malvado de um corsário e uma jovem grega portando uma ânfora. Talvez ele as tivesse sonhado. Talvez houvessem desaparecido de fato. Diz ao pai que devem comprá-lo, pois é o livro que lhes falta, que fechará a coleção, até então supondo-se completa, mas ouve em resposta que não têm dinheiro para coisas assim. Júlio pergunta o preço do livro à vendedora, escuta com grande surpresa que ele custa a ninharia de alguns centavos, justamente o que traz no bolso, tratando-se de moedinhas que haviam ficado ali, no bolso de sua calça, desde que as ganhara de um tio, quando menino. Pega da estante, por detrás do vidro, o volume supostamente ilustrado e o abre junto a seu pai, os dois agora movidos por uma latente curiosidade. Mas constata, decepcionado, que o livro todo, que as páginas contidas sob aquela portentosa capa versam sobre um único assunto, que ele não pode identificar qual é. Nenhuma imagem o auxilia, nenhuma ilustração, nenhuma foto. Sente-se constrangido por ter criado aquela expectativa e ter frustrado seu pai, além de si mesmo. Não lhe ocorre sequer sobre o que seja aquele volume, que de toda forma não lhes interessa mais. Compreende, por fim, este limite: a coleção que tanto lhes servira, que os mantivera unidos durante outra fase da vida, não aceita qualquer continuidade. Percebe que está sozinho na livraria antiga. E ainda tem tempo de lamentar as moedas.

Impressionavam-me intromissões dessas em meio a um dia qualquer, uma hora qualquer, a maneira com que a memória me atirava à frente esta ou aquela imagem e como o inconsciente me mantinha informado de tais abismos, mesmo enquanto outras situações decorriam, avançando ou desmoronando. E o preço disso eram alguns sonhos. O quinto livro, Augusto, não existe. A coleção, tal como a história de eu estar unido a meu pai em outra época, está contida em si mesma. E fechada para sempre.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

23. Treze, uma abelha assassina? – sequência

21. Treze pode acontecer – anterior

Imagem: William Harnett. Mercadorias baratas. 1878.

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