Office in a Small City por Edward Hopper

Fraudes por uma boa causa: a minha

Começou então uma espécie de questionário detalhado, ao qual eu ia respondendo com uma enorme fingida inocência.
Com aquela cara que só eu sei fazer nessas horas.

Saturado. Férias vencidas. Não aguentava mais ouvir falar em processos e tinha saudade das balanças.

Caí doente, gripe demolidora, febres avulsas. Telefonei para explicar-me, tive de ouvir mais uma vez aquela gravação de que havia um mundo bem melhor todo feito pra mim. Fui ao médico, voltei com um atestado.

“Deixa com o Expedito”, disseram-me. “O adendo que acompanha o laudo médico tem que ser assinado por ele antes de ser enviado ao superintendente.”

Eu não sabia que o Heitor Expedito tinha de assinar esse tal adendo. Não sabia que o Heitor Expedito tinha de assinar alguma coisa. Nem sabia que havia um superintendente. Nunca se sabia de tudo na Leôncio & Barradas Advocacia Ltda.

“O atestado”, disse eu estendendo-lhe o papel.

“Ah! Deixa eu ver…”, fez ele, levando a mão ao queixo, muito concentrado e circunspecto, como se estivesse diante de inextricáveis hieróglifos, mas não que fosse admitir isso, claro. Por fim, anexou o tal impresso previamente preenchido, ao qual só acrescentou detalhes, como data do dia e número de minha matrícula profissional, e então iniciou o que era, a meu ver, um caso à parte naquele universo de irrazoáveis surpresas: sua assinatura.

A assinatura do Heitor Expedito era, perdoando-se o aparente péssimo paralelo, uma extensão do exibicionismo das aves tropicais ou de uma estranha dança criada para uma só mão. Uns tracinhos verticais, disfarçadamente tímidos, vão se repetindo tão próximos uns dos outros que tornam o nervoso zigue-zague quase imperceptível, quando, bruscamente, o autor de tal façanha interrompe-se, por um segundo talvez, e então abre-se ampla uma curva rápida, imensa, como se, num instante, ele houvesse perdido o controle e fosse rabiscar todo o papel barbaramente, o que, é claro, não ocorre. No fim, dois cuidadosos e precisos pontinhos, aplicados com inesperada força em ângulos opostos, enfeitam todo esse engenho de arabescos, como parecem também preencher a alma desse homem com certo orgulho cotidiano, quase automático, de autoestima revitalizada a cada autógrafo. Havia outras assinaturas estranhíssimas ali. O doutor Aguiar, por exemplo, era o autor de um desses complicados engenhos. Mas nenhuma outra podia competir com a do Heitor Expedito, cujos últimos mínimos golpes da caneta de grife, entre os estágios finais do desenvolvimento, conduziam ao desfecho aquela maravilha estonteante do grafismo, dir-se-ia um resultado impagável.

O médico dera-me cinco dias. No terceiro, eu me sentia curado. No quarto, ignore-se o duplo sentido, trabalhei um poema que me entusiasmava. No último, lamentei não ter dinheiro para mandar o escritório a todos os diabos. Contava as horas para anoitecer: meu último dia de licença. No entanto, como em certos momentos de confusão e delírio, a acrobática massa cerebral procura obstinadamente uma saída, ainda que não o desejemos, nessa mesma noite ocorreu-me algo muito simples, porém brilhante. Eu estava ainda convalescendo. A gripe manifestava-se em suaves resquícios, como no gosto da saliva e em ligeiros escorrimentos nasais. Deixei meu aconchegante dormitório, debrucei-me no balcão do primeiro boteco e pedi a cerveja mais gelada do mundo, que deitei em sucessivos copos goela abaixo, cada um deles quase de um só gole, arranhando a laringe. Saí de lá rouco. Na manhã seguinte, estava afônico. Voltaram-me o resfriado e a febre. O médico, surpreso por eu haver piorado tanto:

“Não compreendo…”

“Pois é”, eu entre espirros perversos.

Ninguém acreditaria que um cidadão de bem atentasse contra a própria saúde, por isso ele não desconfiou de nada. Era um clínico geral, jovem, rosto redondo, ar de menino mimado que sempre estivera atento à conservação do bem-estar físico, e afinal por que pensaria ele em qualquer outra coisa? – nisso e talvez em dinheiro, como todo médico que se preze. O nariz pontudo, fino, algo nele me lembrava um passarinho, um bem-te-vi talvez, mas isso deve ser por força de associação, é que eu pensava um instante antes em bem-estar. Olhou-me por algum tempo, como diante de um caso raro, assumiu um ar professoral, inclusive engrossando um pouco a voz, não sei por quê. Deu início a uma espécie de questionário detalhado, ao qual eu ia respondendo com uma enorme fingida inocência, com aquela cara que só eu sei fazer nessas horas: cabisbaixo, olhos quase lacrimejando, sério e apático (educadíssimo!), resistente mas abatido, em suma, a vítima perfeita. Fuma, não fumo. Dores, sem dores. Não. Mais ou menos. Sim. Mais ou menos. Talvez. Não tenho certeza. Casos na família? Ah, doutor, se o senhor soubesse…

 “Pratica algum exercício?”, perguntou a certa altura.

“Bem…”, pensei muito, então me lembrei do escritório com alguma alegria. “Subo escadas.”

“Só isso?”

Pensei mais um pouco.

“Depois, desço-as.”

Deu-me outros dias, medicamentos mais fortes.

“Preste atenção. Este, duas vezes ao dia, está vendo? Este outro, você toma após o jantar. E este aqui…”

Fingi que memorizava aquilo tudo, dobrei com cuidado a receita, antes de enfiá-la no bolso da camisa, para que ele bem me visse, o bem-te-vildo. Assim que saí, fiz dela uma bolinha mal amarrotada que pus a perder no primeiro cesto de lixo público junto à esquina do consultório, bem onde se grudava um colante com os dizeres: Este bairro é do Senhor Jesus. Então. Quem precisa de médicos?

Levei o novo atestado ao Expedito.

“Como? Não sarou ainda?”

Um espirro súbito, só para ilustrar a situação toda.

“Pois é.”

A seta de Verena – Guia de leitura

37. Os três patetas sem violência – sequência

35. Paradoxo do registro e do esquecimento – anterior

Sobre o livro

Imagem: Edwina Ashton. Eles amam a natureza (detalhe). 2008.

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