Office in a Small City por Edward Hopper

Um segredo, entre outros

Sempre observara detalhes e minúcias, à maneira de um estrategista.
Sempre tivera a impressão de estar sendo enganado.

No intervalo de almoço, repassar sem compromisso as estantes de discos das lojas. Procurar um livro com a ajuda sensual de uma vendedora a quem aparentemente também corresponda algum interesse. Encontrar com grande prazer um objeto sob medida às suas necessidades pessoais e de rotina. Pequenas conquistas. Realizações, proporcionalmente. O que ocorre quando se está ouvindo música e se volta ao início a faixa predileta? Qualquer coisa assim preenchia as exigências mais simples de um sentido imediato e efêmero, embora cada um desses momentos pudesse sempre ser repetido, como se Júlio os cultivasse. Mas os grandes alicerces morais e as ideias fixas, os livros de leis e as tábuas de mandamentos, como as regras do condomínio e os códigos do trânsito, tudo o que faz acreditar que cada um de nós deva viver por amor, por seus filhos, sua carreira e seu deus, não acrescenta nenhum motivo claro que se desprenda da conhecida e ampla ordem de sobrevivência, com suas nuanças e extremidades. Alguém que seja o que é não sabe por que vive seu tempo e sua vida, sobre um planeta de águas e ecossistemas, seguindo o que segue, antes de ir-se ou desaparecer.

“Boa tarde, capital! Temperatura em declínio. É, minha gente, outra frente fria se aproximando, pega lá de volta o seu casaco no armário. E vamos de música. Esta é a estação mais alegre da cidade…”

Tinha vontade de propor um esforço concentrado, um mutirão por todas as partes do mundo, com a ajuda dos governos e de todos os voluntários possíveis, desde as crianças nas escolas até os mais idosos, com sua carga de experiências, para que o ajudassem a encontrar o propósito da vida. Riu sozinho, em silêncio, em seguida. Ele próprio não tinha tanta vontade assim. E se, depois de todo esse esforço heroico, ninguém encontrasse nada? Por enquanto, nem uma pista sequer. (Dessa vez, nenhuma vontade de rir.) Nem uma única pista. Absolutamente nenhuma. Isso, sim, era de arrepiar.

Quando lhe acontecia vivenciar um detalhe que vagamente o emocionava ou parecia satisfazer um certo propósito de realidade, sentia como se despertasse de um sonho em que estivera sendo enganado (e enganando-se), covarde e confortavelmente. Ao longo dos estudos e da convivência com tantos que propagavam viciosamente o valor dos valores, o sonho do ouro ou dos diamantes falsos, que praticamente eram os mesmos, voltava-lhe sempre essa impressão de logro, com isso motivando-o a erradicar gradativamente uma crença e outra, desde as inofensivas superstições às grandes propostas esotéricas, só aparentemente complexas, cada item das cartas enumerando as noções de cidadania e segurança que aos outros era tão simples aceitar e seguir, como se fixassem uma tabuleta à porta de casa e jamais mudassem de endereço. Quando se atraía por uma canção de rádio ou reencontrava um conhecido que o informava sobre uns antigos colegas, pensava: “Não se renda. Não se detenha. Não se detenha nunca.”. Era também uma crença, sua tabuleta dependurada de qualquer maneira, em ganchos e suportes improvisados, mal fixados e prestes a ruir com o tempo. Era notável, mesmo para ele, que desde pequeno lesse tudo o que lia com redobrada atenção, a fim de não assimilar negligentemente as ciladas e os truques armados pelos autores. Para não cair comovido por lágrimas forjadas, para não se envolver com o efeito imediato e inútil dos sentimentalismos que lhe propunham. De resto, para nunca ser enganado. Um segredo, entre outros. Segredos que não interessavam a ninguém, mas que eram segredos assim mesmo. Sempre observara detalhes e minúcias, à maneira de um estrategista. Sempre tivera a impressão de estar sendo enganado.

“Não se pode ver sempre por esse prisma”, advertira-o certa vez uma professora. “O que você tem lido é o que há de mais significativo em nossa literatura.”

Mas não se tratava apenas de uma questão literária, o que ela não pôde compreender na ocasião. A literatura, como vista por ela, nunca fora para ele senão mais uma via de acesso a questionamentos fragmentados, carentes de unidade, que lhe acrescentavam motivos para pensar. E duvidar. Os livros o atraíam e o repeliam, alternadamente. E os colegas cultivavam a falsa impressão de que ele tinha sempre um autor à mão e uma frase na manga, de que acabaria por tornar-se um intelectual ou o equivalente, ou algo ainda mais aborrecido.

Bruno tentando acordá-lo. Também se iludia quanto a ele. Ainda. O noticiário da meia-noite, além de suas forças.

“… sobre aquele escritor!”

“Não quero saber de escritor nenhum! Vá à merda e me deixe dormir!”

Dia seguinte.

“Quem era o escritor?”

“Um nome complicado. Não lembro.”

“Não se lembra?”

“Ele também era complicado. Esses caras são todos complicados.”

“Notícia sobre um escritor… Deve ter morrido, só pode ser. Bom, que que eu tenho com isso?”

“Pensei que você gostasse de ler, porra!”

“Às vezes, eu leio. Não é uma questão de gosto. É porque eu…”

“Então foda-se, pronto. Cadê o meu bilhete? Deve ter umas quatro viagens ainda. Nem vou tomar café na padaria hoje, estou uma merda de atrasado!”

Júlio pensou em uma maneira de insultá-lo barbaramente, mas Bruno retirou-se às pressas, num instante, quase aos pulos, e isso não foi possível. A vaga ideia de que mais um escritor houvesse morrido causava-lhe certo alívio, inexplicavelmente. Sim, inexplicavelmente. Daí o sintoma de bom humor.

Ainda nesse dia, mesmo envolvendo-se com uma estúpida conversa durante o intervalo, conseguiu evitar que se afetasse sua mórbida racionalidade, além de acabar incomodando seus interlocutores, casualmente um colega de sua mesma seção e uma atraente funcionária do andar superior, junto ao balcão da copa, onde tomavam café, ao lado de um aquário.

“Deixa, deixa, eu faço questão”, o colega servindo a elegante companheira de intervalo.

Júlio estava apoiado bem ao lado do aquário e não parecia disposto a mover-se nem para agradar à colega a quem todos queriam sempre agradar.

“Esses peixinhos sempre com a mesma cara, não é?”, o mais gentil entre todos, com o pretexto de se fazer notar mediante tais comentários.

Ela sorriu para que todos vissem como era bonita. Estreitou os olhos por um instante, quase com uma piscadela, um sinal de que se encantara com a observação, e também para que vissem como era charmosa e espontânea.

“São bonitinhos, não?”, ainda o interessado. “Você já viu algum desse tipo aqui, Júlio? Esse azulzinho…”

Júlio, com grande tranquilidade: “Uns cretininhos, nem me diga. Ficam aí, de um lado pro outro… Um dia, amanhecem boiando, e alguém os tira da água com uma dessas redinhas de plástico, sabe como é? Não é fabuloso?”.

Olharam-no por um instante apenas. O colega fingiu não ter ouvido, batia levemente com o dedo no vidro espesso do aquário. Ela, que nem precisaria dar-se o trabalho de responder, a princípio conservou-se calada, mas emitiu um nebuloso pois-é, sem se animar muito.

“Mas são bonitinhos”, o rapaz, ainda dirigindo-se a ela. “E estão sempre alegrinhos, agitadinhos. Olha, olha esse aqui…”

“E acabam sempre boiando, os tontinhos.”

“A vida é um mistério”, a moça, que era declaradamente religiosa.

“Talvez não. Esses peixes é que são uns apáticos. Não têm necessidade de compreender nada. Talvez sejam católicos.”

“Quem sabe?”, ela não resistindo, aparentemente fisgada, entre ressentida e raivosa. “Deus guarda lugar para todos em Seu Reino.”

“Você acha que os peixes vão pra algum lugar depois de morrer? E por que fariam isso?”

O colega de seção, surpreendentemente intrigado, para quem parecia indiferente aquele tipo de bobagem, preferiu ficar quieto enquanto ela revidava.

“Nós somos um pouco diferentes dos peixes, se você nunca percebeu isso.”

“Mas temos coração e cérebro como eles. Pulmões. Intestinos.”

“Você está querendo dizer que nós temos cérebro de peixe, é isso? Não, não, deixa eu ver se entendi: é isso, não é? Foi o que eu entendi.”

“Não todos. Mas é preciso ser forte para assimilar certas verdades. Esse aquário, de água tão cristalina, talvez seja a própria metáfora do que não queremos ver. Nem quero imaginar o que temos ou não em comum com esses idiotinhas. Além disso…”

“Deixa eu voltar ao trabalho, tá bem? Depois a gente conversa mais sobre isso, tá bem?”

“Me espera, eu também já tô estourando meu horário.”

Júlio saboreou o último gole do café. Pequenos exercícios de condenável bom humor. Uma grande recaída, sem dúvida.

Um amigo quem me disse: a verdadeira maldade é tão rara que deve ser guardada para as grandes ocasiões. Não deixa de ser interessante. Só que ele nunca esboçou um exemplo do que seriam essas ocasiões.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

 21. Treze pode acontecer – sequência

19. Coelho, uísque e gelo, sonatas de piano – anterior

Imagem: Carolyn Pyfrom. Peter.

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