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Barbery – A elegância do ouriço
Considerado uma revelação na França no ano de sua publicação, o romance de Muriel Barbery traz a notável visão de mundo dessa autora, por meio de duas personagens nascidas em classes sociais extremamente distintas – o que não impede que se manifestem sua inteligência, sua sensibilidade e seu senso crítico, em meio a ambientes de futilidade e desinteresse. A amostra a seguir envolve a personagem da zeladora, filha de uma família de camponeses, que aprende a ler e se desenvolve por sua conta própria ao longo dos anos. Ela recorda um momento de sua infância, quando, junto com outras crianças amontoadas num corredor da escola no primeiro dia de aula, é auxiliada por professores que cuidavam de retirar seus casacos molhados, enquanto uma pesada tempestade se abatia sobre a região.
Para quem não sabe o que é o apetite, a primeira mordida da fome é ao mesmo tempo um sofrimento e uma iluminação. Eu era uma criança apática e quase enferma, de costas arqueadas a ponto de parecer corcunda, e que só se mantinha na vida pelo desconhecimento de que pudesse existir outro caminho. Minha ausência de gosto beirava o nada; nada me dizia coisa alguma, nada me despertava, e, palhinha fraca sacudida ao sabor de ondas enigmáticas, eu ignorava até mesmo o desejo de acabar com a vida. […] A revelação aconteceu quando, aos cinco anos, indo à escola pela primeira vez, tive a surpresa e o pavor de ouvir uma voz se dirigir a mim e dizer meu nome de batismo. […] Ali onde meus pais recorriam a um gesto ou uma bronca, uma mulher, que agora eu achava que tinha os olhos claros e a boca sorridente, abria caminho para o meu coração e, ao pronunciar meu nome, estabelecia comigo uma proximidade da qual até então eu não fazia ideia. […] Então, meus tristonhos olhos cravados nos dela, agarrei-me à mulher que acabava de me fazer nascer. […] “E esses olhos tão bonitos”, me disse também a professora, e tive a intuição de que ela não mentia, que naquele instante meus olhos brilhavam com toda essa beleza e, refletindo o milagre de meu nascimento, cintilavam como mil fogos. Comecei a tremer e procurei nos dela a cumplicidade que gera toda alegria partilhada. No seu olhar suave e bondoso só li compaixão. Na hora em que enfim eu nascia, viam-me somente com piedade.
Muriel Barbery, A elegância do ouriço
(Na amostra acima, alguns trechos foram suprimidos. Na íntegra, perfaz duas páginas do romance.)
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