Office in a Small City por Edward Hopper

Camelos, dromedários e o melhor de um mundo pior

Mas não importa a época, nunca podemos escapar a um mundo pior.
Nada parece impedir que os governantes exerçam, renovem e aprimorem suas intenções.

É preciso que se diga: há escravos e escravos. Não se deve padronizá-los, como a ninguém, afinal eu também fazia parte desse rebanho, registre-se. Há tipos distintos, há asnos descontentes e bestas de carga, há camelos e camelos, dromedários e outros seus afins. Falando nisso, camelo e dromedário são a mesma coisa? No primeiro caso, até onde eu saiba… Ora, convenhamos.

A clientela, um caso à parte. Empresários ardilosos iam receber os frutos de suas tramoias; homenzinhos humildes vinham buscar sua migalha de logro. Os mais sarcásticos tratavam-nos por chefe, doutor, patrão e até mestre. Ninguém reagia. Mas quem – quem?! – entende os escravos?

A primeira vítima que atendi, que ninguém ali queria atender, era uma senhora muito feia e triste. A foto na cédula de identidade, desatualizada, contava algo de sua juventude, quando já era feia, porém menos triste. Governos se revezaram, generais se fartaram e morreram, cédulas e moedas foram recolhidas, substituídas, incineradas, fundidas, e essa pobre mulher andava viva em alguma parte, dormindo e acordando, enquanto se inventavam novos aparelhos e se publicavam mais teorias sobre a economia, a política, os destinos do mundo e da sociedade, que essencialmente é sempre a mesma. Não, ninguém queria atender essas criaturas desafortunadas, era claro. Mas quando eu tentava esclarecer a dúvida de uma jovem bronzeada e peituda, outro escravo sempre se prontificava a ajudar. Um terceiro também se oferecia, fingindo não vê-la. Todos queriam entrar na conversa, tal é a realidade dos expedientes e a fome dos cardumes humanos, não importa que o neguem.

Discussões não eram raras, algumas memoráveis. Eu as evitava ao máximo, porque sonhava ser amigo de todo mundo. É normal que os homens não se entendam, mas, naquele tempo, isso me assustava um pouco. Na escola, conheci uns rapazes, filhos de fazendeiros e empresários, filiados a um determinado partido político – previsivelmente, conservador. Todos eles pretendiam fazer fortuna com a política e, mesmo assim, apesar do ideal comum, detestavam-se entre si. Registre-se também, por amor à verdade: em minha classe havia um grupo dito de oposição, que parecia dividido em duas facções: os maoístas trotskistas e os trotskistas maoístas. Os maoístas consideravam-me subversivo, incapaz de integrar-me à disciplina de seus métodos. Já os trotskistas acusavam-me de alienado e fútil, pois sabiam que eu amava ler poemas não-sociais, particularmente os de minha querida Sylvia Plath. O fato é que nenhuma geração está preparada para as pessoas de ideologia livre, se é que isso possa existir. Somos sempre criticados por esta ou aquela posição, mais ainda se não tomarmos posição alguma. Agora mesmo devo estar sendo acusado de uma digressão dissimulada, o que não me altera absolutamente, tanto que a apontei antes que a denunciassem, para que, ainda uma vez, fique clara minha antiga aversão à hipocrisia.

Mas não importa a época, nunca podemos escapar a um mundo pior, pois nada parece impedir, ainda que pela vida toda acreditemos nisso, que os governantes exerçam, renovem e aprimorem suas intenções. As classes de poder sempre encontrarão um meio de nos convencer a todos de que precisamos mais delas do que elas de nós. Que política não é coisa para o povo, daí o bom funcionamento de nossa sociedade, cada qual consciente de seu lugar e de suas capacidades: não poderá o roceiro administrar a Embaixada da República nem o executivo bilíngue poderá ser desperdiçado como professor. Certas artimanhas ideológicas, que muitos dos conservadores asseguram ter caído em desuso, induzem ao pensamento previsto, às funções previstas, e é como se dissessem: “Aí está a música que melhor te distrairá, os programas que te farão sorrir, aí está a língua suficiente para prosseguires, tens aqui uma migalha da história, de mais não sentirás falta, aqui está a dimensão da tua liberdade.”. Pois sempre haverá um meio de convencer a maioria escrava de que são o mesmo a água e o vinho. O céu é verde. E lá existe um deus para protegê-los.

Camelo e dromedário, lembro-me agora, não são os mesmos. O camelo tem duas; o dromedário, uma corcova. Registre-se.

A seta de Verena – Guia de leitura

34. Ácaros e outros micro-organismos – sequência

32. Episódios de minha desastrosa inclusão social – anterior

Sobre o livro

Imagem: René Magritte. Golconda. 1953.

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Comentários

Uma resposta para “Camelos, dromedários e o melhor de um mundo pior”

  1. Avatar de saura

    lendo-te e apreciando

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