Office in a Small City por Edward Hopper

O número zero e as dez mil coisas

As conquistas humanas primeiro impressionam pelo desafio aos limites.
Depois nos cansam como se tudo fosse apenas uma alegoria, uma amostra do que éramos capazes…

Não sabe o que pensar? Ora, não é o fim de tudo. Conheci poetas que nos aconselhavam a não pensar, eles próprios passaram a vida pensando, pensando, pensando… Outros houve que nos instigavam a sempre pensar em tudo. E acabaram à margem da piscina, gozando o lucro dos livros vendidos.

A pretensão de se construir com tais sequências o que seja mais um romance é ridícula. Não haverei de escrevê-lo e preciso que entenda isto: tais projetos de arquitetura, Augusto, queira ou não, são parte da vaidade humana, o que atualmente não tem me interessado muito. Sonhos fabulosos da mesma ordem que engendra, em maior ou menor escala, as grandes pirâmides da Antiguidade, as superproduções do cinema, as viagens ao espaço e a gravação, por um único intérprete, de toda a obra de J. S. Bach. As conquistas humanas primeiro impressionam pelo desafio aos limites. Depois nos cansam, como se tudo fosse apenas uma alegoria, uma amostra do que éramos capazes, e não quiséssemos mesmo deixar nosso mundo de limites, onde certamente sempre poderemos viver melhor. Não estou ironizando nada. Sinto que os pequenos mundos são ricos em significado, e me parece indiferente acabarmos numa colônia em órbita ou sepultados em pirâmides. Minha opinião, claro. Não a dos astronautas. Também não a dos faraós, Amon-Rá os tenha. Mas vou contar-lhe: achei engraçado que os primeiros heróis-cobaia nos trouxessem punhados de pedra e poeira lunar. Não podia vê-los com aquele balde e uma pazinha, pensava em suas frases sublimes e em sua infinita obstinação em entrar para a história, as entrevistas coletivas, as primeiras páginas, as capas dos grandes periódicos e os álbuns de figurinhas – e aquele sujeito com uma pá e um baldinho, francamente… As crianças são mais sérias, o que também não significa muito: a seriedade e a pretensão do sublime sempre nos enganaram.

Do mundo de limites, você quer. A contrapartida, nada tentadora: na esteira dos dias, após todos os movimentos, não restam senão objetivos imediatos, simplistas, descontando-se ainda as obrigações da sobrevivência. Vou comprar um barbeador e um carro novo. Vou me formar e me casar. Vou me aposentar. Quero viver muito ainda e ter saúde. Está bem, concordo. Os exemplos ilustram (mal) as sugestões, por si só, nesse caso, nauseantes. Você pode acabar como consultor de informática ou bancário (com grandes possibilidades de carreira), professor de judô ou vendedor de cortes de gabardine – mas, claro, não no verão. Agora observe o diplomata e o ministro, o erudito que se consagrou, o jovem empresário próspero, pessoas com pedigree, observe-os a todos. Mesmo que nos nutríssemos de um objetivo maior, a história também passa. A história de tudo o que passou. Não há outro jeito, meu amigo. Ou não seria história. E a narrativa que ninguém pode contar, dessa trama infinita, acrescento-lhe, dos cordões umbilicais que desembocam na névoa do passado remoto, no caos. Sim, isso é inevitável, estarmos sempre em meio a um processo. Entre um extremo e outro. A unidade ou a ausência dela. O número zero ou as dez mil coisas. O selo de segurança ou o lacre inviolável (não seria a mesma coisa?). A montanha no centro do mundo. A teoria de campo unificada. O ponto luminoso que é a intersecção de todas as linhas. O falso céu de gesso, a caverna do tesouro, que mais você quer? Meu epitáfio? Como eu gostaria que fosse? Algo assim: “Respeite o silêncio de quem viveu tentando compreender todos os ruídos.” E talvez… “Vivemos para tentar dizer quem somos.” Mas isso importa? Para quem? Parece algo egoísta e solene. Estamos decaindo de novo.

Não, claro que não pretendo deixá-lo de mãos vazias. Por que então lhe contaria isso tudo que conto? Mas você há de convir: não basta o arrivismo em busca de sucesso, a solução fácil, a suave cegueira, o burrico seguindo a cenoura. A rainha (ou a condessa ou a duquesa, o que para nós dá na mesma) quebra a estúpida garrafa contra o casco do transatlântico, pago com o sangue dos camponeses e perfuradores de minas, sangue que chega às suas mãos por vias oficiais e legítimas (!). A rainha também paga o preço, enquanto envelhece, de apenas ser. E nós, que a tudo assistimos do camarote do sarcasmo (rapaz, isto é ser poético!), silenciamos para que essa senhora ponha o esplêndido navio em seu curso, sem imaginar talvez que essa magnífica embarcação venha a naufragar horas depois. Por que eu disse isso? Não me incomoda saber. Não se incomode também. Entenda como quiser, e estaremos entendidos.

No fundo, é o que não se entende o que nos cativa e impulsiona. Sartre lia Dostoiévski suspeitando que pudesse assimilar dele o que parecia ser um grande segredo – até descobrir, sem mágoa, que não havia segredo algum. Eis o que espero mostrar-lhe: de tudo o que pensei até hoje, talvez uma ou outra ideia me sirva por mais tempo. Já não me perturba compreender que tudo é passageiro, sem absolutos. Ao contrário. Espero que você também se envolva com essa incomparável sensação de êxtase, a liberdade de não pensar. Viver aos saltos, descrendo do destino e dos caminhos certos. Claro que as respostas existem. Nós é que não as encontramos ainda. Conclusões parciais, nunca definitivas. Um exemplo, só para estragar tudo: a ideia de que tudo deva ser questionado deve ser questionada.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

18. Agenda de não-planos – sequência

16. Suínos, símios, restaurante – anterior

 Imagem: Paul Klee, Individualidade. 1922.

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Comentários

2 respostas para “O número zero e as dez mil coisas”

  1. Avatar de Malu

    Como dizia a boa Clarice – ” VIVER ULTRAPASSA QUALQUER ENTENDIMENTO”

    Excelentes textos por aqui.
    Abraços

  2. Avatar de Expedito G Dias

    Belo texto, Perce. Incrível como temos essa sensação de que existe algo misterioso a ser apreendido em tudo. Talvez seja esse o nosso leitmotif.
    Um grande abraço!

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