Office in a Small City por Edward Hopper

Se é que eu suportava alguém…

Nessa época, eu imaginava (quase sem querer, juro) algumas de minhas colegas passeando pelo escritório seminuas.
Bem, bem. Coisas de primatas.

Eu comecei motivado, entusiasmado, por que não? Atendia clientes ao balcão, dedicando-lhes o máximo de atenção e simpatia, conforme eu mesmo me aguentava.

A assistente do doutor Aguiar, aquela que eu disse que poderia carregar pedras na cabeça e mesmo assim agradecer por tudo, parecia não se sentir bem com minha atitude. Talvez ela não conseguisse fazer o mesmo, por incompetência ou tédio, e não gostava de se sentir inferiorizada no item atendimento. Certa vez, aproximou-se de mim.

“Por que você não pode apenas pedir o número do processo e conferir o documento, em vez de ficar conversando com eles?”

Tive vontade de ironizar. Com eles quem? Com os documentos? Coitada, não valia a pena.

“Porque gosto de ouvir a voz das pessoas”, eu respondia triunfante, orgulhoso de minha humanidade, que até então não me ocorria rimar com ingenuidade. Apesar de minha juventude repleta de ideais iluminados, a minha sombra, por trás de tudo, pretendia dizer-lhe com grande atrevimento e prazer: “Olha aqui, sua puta! Cuida da tua vida e não me enche mais o saco com essas perguntinhas medíocres, ouviu bem?!”. Havia uma outra versão, guardada nesse lado escuro e secreto de minha alma, que se beneficiava de uma imitação das falas do doutor Aguiar, e terminava assim: “Fui claro?!”. Que vergonha isso de imitar o doutor Aguiar, admito. Mas que delícia que era.

Se é que eu suportava alguém na Leôncio & Barradas Advocacia Ltda., pelo menos durante aquela primeira fase, era o Pradinho. José Antônio Prado, baixinho. Foi ele quem me ensinou o serviço e achou que eu conhecesse o Expedito como todo mundo. Pegava-me a contar coisas, abria-se comigo – mulher, filhos, vizinhança, mais o que via na TV nos fins de semana, manhã, tarde, noite, que é vasta a programação, tanto que ele próprio se interrompia: “Ah, mas chega, chega! Já te cansei bastante com essa conversa toda.”. Quando alguém chega a isso, e o diz, supostamente entediado também, com certeza espera que o outro pronto lhe responda um não-absolutamente-por-favor-continue. Eu ficava quieto, deixando que ele próprio se contivesse, dava-lhe chances para isso, o que parecia ofendê-lo de certa forma. Como não guardávamos rancor um do outro, Pradinho havia se familiarizado comigo, eu com ele. Havia em nosso coleguismo uns traços de amizade que nos faziam verdadeiros, honestos e recíprocos. Ao contrário de Glauco Pinheiro de Pádua, era cético e não me aborrecia com chavões. Certa vez, em que tocamos no assunto, disse: “Bom, eu não acredito, mas respeito os que acreditam. Por outro lado, é possível que exista. Se existe, sei que perdoará minha descrença. Não digo que sim nem digo que não. Também não posso provar que não existe. Ora, se não existe, como posso provar?” Et coetera, et coetera… Etc. Pradinho é desses que procuram justificar suas opiniões, como se com isso encontrasse um meio de agradar a todos. “Não voto na direita, mas acho que a esquerda… Não sou contra a esquerda, mas votei no centro porque afinal… Não sou católico, mas pratico princípios cristãos, o que eu acho mesmo é que Jesus… Respeito os que acreditam, o que é que eu posso fazer?… Acho válido… Cada um faz aquilo que…” – assim estendendo toda essa oratória tremebunda, própria a contentar velhinhos espertos. Mas devo admitir, não era sempre assim. Já o ouvi respondendo incisivamente no sanitário, o que muito me surpreendeu.

“Deixe estar, que Deus é grande”, dizia um escravo, entre os mais convictos. “Deus é pai, sabe o que faz. Pois Ele não está em toda parte? Pois então… Sempre junto com a gente.”

“Não seja bobo”, o Pradinho. “Deus não está em parte alguma, está é em seu coração. Até padre sabe disso.”

O sanitário parecia estimular a coragem dos escravos. Talvez por sua óbvia condição de clandestinidade ou talvez… Ora, sei lá. Ninguém entende os sanitários.

Nessa época, eu imaginava (quase sem querer, juro) algumas de minhas colegas passeando pelo escritório seminuas, calcinha e sutiã, sapatinhos e sandalhinhas, tudo em meio à rotina, e chegava a ver-me brincando com uma delas, empurrando-a para cima de uma mesa, entre sorrisos e risadinhas, entre os rituais de negação que, desde o início, já a inclinavam à aceitação, ela se inclinando à aceitação, como disse, e se inclinando sobre a mesa e então… Bem, bem. Coisas de primatas. Uma vez, me aconteceram uns pensamentos assim, dada a proximidade de uma escrava sedutora que fuçava em umas gavetas ali perto. E assim, em tal momento, fluía toda a corrente sanguínea, agora especialmente direcionada por essa encantadora colega, à conhecida região localizada, o poder de minha mente em pleno processo de felicidade imaginativa, quando o Expedito chegou, com sua não muito animadora expressão fisionômica, e falou formalmente com essa ninfa, abrindo e fechando umas pastas da estante lateral, sempre muito atento às ninharias do expediente, em cada minuto, e então eu percebi que ele, ao se virar, soltou um peido quase inaudível. Outro igual, logo em seguida. E sumiu pela porta.

Minhas centelhas divinas para deflagração de graças e orgasmos virtuais se apagavam como repetindo minhas sinapses, rapidamente injuriadas. Uns caras assim, no mundo, e a gente perde a alegria de viver. De fato, nenhum sintoma de felicidade ou erotismo resiste a intervenções dessas. A escrava-ninfa se foi, por causa de uma obrigação qualquer. Que desgraça essa vida.

A seta de Verena – Guia de leitura

 32. Episódios de minha desastrosa inclusão social – sequência

30. O escravo se diverte – anterior

Sobre o livro

Imagem: Edward Hopper. Escritório à noite. 1940.

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