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A grande notícia trágica
E sempre essa viagem se repetia. E sempre havia gente nos vagões.
DIRIJA-SE À PLATAFORMA OU ACESSO MAIS CONVENIENTE
ORIENTANDO-SE PELAS PLACAS DE SINALIZAÇÃO.
No metrô, também se comentava a notícia mais chocante dos últimos… meses? anos? Quanto tempo resiste o mundo sem uma grande tragédia? Quanto tempo podemos viver sem um surto? Sem um susto. Um escândalo. Um ato de loucura. Júlio repassava os tipos negros no jornal aberto que escondia o rosto do homem à sua frente. Tão familiares à vista o papel, a tinta, a diagramação, e tudo como contando sempre o mesmo, porém, vistos de mais perto, os periódicos escondem grandes e graves diferenças, desde escandalosas chamadas obscenas a sutilezas ideológicas que, por vezes, até os mais atentos assimilam sem dar por isso. Júlio pensou que a manchete mais surpreendente que alguém pudesse conceber já existia, dissociada, armazenada em dicionário, bastando a exclusiva disposição de cada palavra. Um mundo de palavras, condição do cidadão humano. Ruas e galerias, empresas e personalidades, vocábulos que giram, vão e voltam, em uma fase servindo à orientação, outras vezes incorporando-se ao desgaste e declinando às grandes lições do esquecimento. Pela manhã, nítidas como o jornal à mão e o café fumegante ao som metálico dos pequenos talheres, em tudo o que manipulamos, enfim. Estações com nomes de santos, dos quais hoje ninguém sabe a respeito, exceto que morreram há muito tempo, ou não seriam santos, e mesmo que soubessem, nada teriam mais do que palavras. Uns Paulo, outros João. No mesmo vagão, talvez um Pedro e um Marcos. Marias e Josés para nomear vacas e cavalos, todo o rebanho afinal, pois os nomes começam a se repetir, sendo a ninhada vastíssima e nunca suficiente para esgotar os antropônimos, o que chega a ser um contrassenso. Nomes como Júlio, por exemplo, palavra com que o vestiram e que a ele pouco entusiasmava, não menos, aliás, do que qualquer outra, palavra que o designava, mas que não era ele – a quem quiser, que o entenda definitivamente, na realidade não é tão difícil. Sorte de quem se orgulha de sua palavra-nome, pura sorte. E note-se: pela avenida A, chega-se ao viaduto V. Tomando o ônibus O, você desce no largo L. A revista R vende mais que o periódico P. O banco B conta com mais agências que a seguradora S. E o canal C tem um filme para o dia D. Arquivam-se, ficam. Em cada cérebro em curso, no mesmo comboio, a inefável quantidade de informações catalogadas. Uma senhora simplória: que imagens e palavras guardará até a morte? E a notícia trágica, somando-se a seus valores avulsos, até volatilizar-se também. Outro: esse deve saber de memória os gráficos de oscilação das ações A, ainda o sobrenome de grandes investidores, que lê no caderno de finanças do jornal J, não levando em conta a futura transação final que o livrará dos números e o liquidará, tanto quanto aos que de economias e negócios nunca nada souberam. A gordinha sensual absorve logotipos e marcas de roupas íntimas em um mostruário de liquidação, fotos de belas jovens sorrindo, e o mesmo faz o respeitável homem de óculos logo atrás dela, por sobre seu ombro, mas discretamente, pois ele não é disso, claro.
DEIXEM AS PORTAS DO TREM LIVRES.
COLABOREM PARA EVITAR ATRASOS.
Mais lento após algumas curvas, principalmente quando saía do túnel para o elevado, o metrô fazia abrir a paisagem logo abaixo aos olhos dos… usuários, pensou Júlio. Aí está: o mundo a que nos destinamos. Por vezes, pleno de luz; em outras, imerso em neblina. Dias de sol e manhãs nubladas como esta, breves variações que nada significam, mas que de alguma forma impressionam os ingênuos. Quanto se construiu ao longo dos anos e o que temos para nós, afinal, além das infinitas inofensivas variações? Em cada estação, descem e sobem alguns. Deslocam-se, silenciosos e concentrados em suas próprias vidas, como se, durante todo o tempo, não viajassem para a morte, pensamentos que Júlio logo afastava, por sentir que o conduziam a analogias tediosas e demasiado evidentes, entre trens e itinerários, outra ordem de inofensivas variações. Tudo o que lhe ocorria acomodava-se entre estranhas conclusões, sua mente urbana, em um processo à parte do mundo externo. Enquanto isso, uma conclusão se desdobrava em outra, entre tantos como ele, ao redor e à luz dos olhos de cada um. E sempre essa viagem se repetia. E sempre havia gente nos vagões.
NÃO CORRA.
A PRESSA PODE CAUSAR ACIDENTES.
NÃO CORRA.
Duas jovens acabam de entrar apressadamente, um instante a que as portas se fechem, passos curtos, limitados por sapatos altos. Bem vestidas, mesma altura, e sorriem: como teriam recebido a grande-notícia-trágica? Uma delas, muito bonita; a outra, nem tanto, mas de um rosto marcante e estranhamente atrativo, juntas formando uma agradável simetria de corpos e gestos que parece fortalecê-las. Por seus olhos, quase se pode repassar uma enciclopédia com marcas de cosméticos, neons das lojas de roupas, extensas colunas de palavras impressas que preenchem semanalmente revistas sem fim. Mas como pode você, Júlio, além de supor, dizer a si mesmo o que são tais pessoas e o que lhes vai cabeça adentro? O que sabe de seus interesses, necessidades, predileções e tendências? Avaliar alguém pela aparência, pelo que mais se mova em sua superfície, a curta distância, é como recorrer, você mesmo, com suas graves limitações, apenas aos cosméticos e à confeitaria mal requintada dos discursos com os quais tanto nos habituamos. Julgar um livro pela edição esplêndida. Um país por uma paisagem.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
15. O meio-dia cinzento – sequência
13. Algo entre dois silêncios – anterior
Imagem: Willem de Kooning. Orestes. 1947.
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