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O escravo se diverte
Mas ela era tão magrinha, enjoadinha, irritadinha…
Beethoven acreditava que os seres humanos eram todos iguais. Beethoven! Para estragar tudo, basta citar o senhor Antão de Almeida, que, mesmo tendo sido um crápula mesquinho e oportunista durante toda a sua virulenta carreira, chamaram sensível só porque se debulhou em lágrimas por ocasião do evento de sua aposentadoria, registre-se. Ele discursou, claro, lembrando que havia dedicado toda uma vida à empresa, o que, sem dúvida, era verdade, pois fora bem ali, entre aquelas divisórias e sob aquelas lâmpadas, na convivência diária com os que também acreditavam estar superando constantes desafios, que ele realizava suas tramoias e se exercitava continuamente, humilhando os subalternos, vamos deixar por aqui, para dizer o mínimo. Todos ali concordavam que o senhor Antão de Almeida era, no fundo, um bom sujeito, que sobrevivera a um passado difícil e tal. Mas, de minha parte, não gostaria que ele tornasse difícil o presente de outras pessoas, que logo se tornará também o passado delas. Nem consigo imaginá-lo escrevendo uma carta a alguém ou ouvindo… Beethoven, por exemplo.
Ninguém ali ouvia Beethoven. Alguns, pelo contrário, torturavam-nos assobiando temas da telenovela ou cantarolando trechos de sertanejas. Aliás, se porventura eu falava em Beethoven, um dos dinâmicos colegas que me cercavam dizia: “Ah, aquele do tã-tã-tã-tã?”, da mesma maneira como se referiam a Shakespeare como aquele do ser-ou-não-ser. Assim era. Como em certos postulados da Física, ali, naquele escritório, a ignorância, seja qual for a interpretação que pede essa palavra, era uma constante. Registre-se. O cotidiano nos massacrava a todos. Os escravos contribuíam muito. Aos poucos, ficávamos imunes às paixões, o que também, registre-se, tinha seu lado bom, e até convencidos de que o compromisso com o trabalho, a responsabilidade e a retidão de caráter eram, sim, o caminho certo de um homem.
Para estragar mais, quero que todos saibam de um escravo (que valem os nomes?) cujo bigode parecia tornar-lhe menos sombria a condição da existência. Explica-se. Num dia como outro, ele aparecia no serviço de rosto pelado e sorrisinho como desenhado a lápis. “Como é? Tirou o bigode?”, perguntavam. “É…”, respondia satisfeito. “Mudar um pouco.” Havia sempre alguém para perguntar coisas assim. Pois então. Dias depois, via-se outra vez a sombra de novas penugens sob o nariz dele, e sempre havia alguém para perguntar: “Como é? Deixando o bigode?”. “É. Mudar um pouco.” Então. Pois é.
A qualquer momento, ouviam-se nomes extravagantes que um colega dos cadastros pronunciava em voz alta e destacando sílabas, ao repassar papéis de sua seção. “Olha, cara! Olha este: Gumercindo Rolando Chaves.” Uns riam, outros imploravam que se calasse. “Que desgraçado, olha só: Vitalino Corcevedo Galo! Ai, não é fácil…”
Glauco Pinheiro e a recepcionista da editora tinham pares ali. O escritório estava entupido de pessoas que se diziam infinitamente ocupadas, não só quanto ao expediente como também em suas vidas particulares, em suma, o tempo todo de tudo o que eram enquanto vivas. Naturalmente, eu não conhecia seus problemas, mas podia apostar até dois centavos como nem tudo o que contavam era verdade. “Minha vida está uma loucura! Só Deus sabe como eu dou conta…” Não sei por que tantos se comprazem tanto em anunciar bobagens desse tipo.
Uma dessas criaturas sem tempo era a assistente do doutor Aguiar, vítima do vício execrável de agradecer a todos por qualquer coisinha. “Obrigada”, vivia dizendo. “Obrigada.” Por qualquer coisinha. Mesmo quando ela própria fazia um favor a alguém, acabava agradecendo de alguma maneira: “Obrigado…” “Obrigada a você.” Se alguém lhe pedisse que carregasse uma pedra na cabeça até o último andar, na certa ela diria: “Obrigada. Obrigada…” Pior que era magra, a sísifa, olhos de sono e dentes cariados, rosto lembrando um crânio mal revestido, queixo e zigomas salientes. A morte! – quando eu a vi pela primeira vez, sob o teto baixo, sufocante, do escritório. Não vale a pena deter-se nela. As mãos ossudas de Glauco Pinheiro de Pádua também me impressionaram um dia. À parte isso, somos todos, desde já, o que nos espera mais tarde, magros e gordos, feios e belos, pálidos ou saudáveis. Que tipo de louco teve essa ideia de nos fazer viver para depois nos fazer morrer? E por que prosseguir com toda essa encenação patética, agora que sabemos que o tempo se mede em escalas de bilhões de anos terrestres e que tudo isso desaparecerá para sempre? Mas veja-se que pensamentos espontâneos e ridículos, além de obscuros. Não vale a pena deter-se nisso também. Que diferença faz considerar ou não quaisquer perspectivas? Vale a pena que se lembre, às vezes. Mas não vale a pena deter-se em nada.
“Anercídio Rosco Burada!”, anunciava o escravo dos cadastros, como adivinhando a rima própria às minhas pestilentas, dispensáveis, mas secretas, observações.
Agenor… (escapou-me o nome, vá lá!) tinha uma expressão amarga, algo como se andasse com uma careta pregada à cara ou como se tivesse acabado de roer um limão passado. Narrando um incidente qualquer, uma discussão entre ele e alguém, como exemplo, imitava o outro com suas próprias caretas e voz irritadiça, mas fazia a si mesmo com a serenidade e a voz ponderada de uma criatura sensata, pronta a ensinar algo ao pobre interlocutor, que ainda não encontrara a luz. Homens…
“José Mateus Peralta da Cruz! José Mateus… Que infeliz!”
A mais jovem era uma garota magrinha, enjoadinha, irritadinha, mas como tinha fama de ser uma sacaninha, ela despertava a acuidade carnívora dos homens mais próximos. O doutor Aguiar, tanto como todos nós do escritório, sonhava secretamente em comê-la um dia. Vira um anúncio no jornal: V., 17, esbelta, carinhosa, topa tudo… Julgou que o resto da descrição correspondesse a essa colega nojentinha e fascinante. Deu de cara com um travesti, dizem as boas línguas. Mas que não se passe disso, é a vida dos outros, acontece a qualquer que tenha sangue, e não?
“Maria dos Prazeres Perpétua! Quero morrer…” Outras vezes, esse funcionário parecia exultante com novas descobertas. “Tem mais: Paraízo Pinto do Rego! Com Z! Deus o crie!”
Não posso negar que alguma vez também palpitou em mim um tesão de esperança pela mascote do escritório. Mas ela era tão magrinha, enjoadinha, irritadinha…
“Joaquim Persegonha! Deus o guarde…”
Mas a verdade é que cheguei mesmo a sentir ciúmes dela quando ouvi que um dos nossos, por aqueles dias, tinha acabado de passá-la a limpo. E não porque o achasse um imenso calhorda, além de casado e com filhos, mas porque, no fundo, queria eu estar no lugar dele, por mais suja e leviana que me parecesse aquela relação. A bem e em nome da verdade, era o caso. Aconteceu-me o mesmo com uma vizinha que habitava a janela dos fundos, a quem eu observava clandestinamente do ângulo mais favorável de meu quarto. Bexiguenta, cabelos oleosos, pouca cintura e nenhuma bunda, usava tamancos barulhentos, costumava cantar breguices,com a espontaneidade dos desafinados. Eu a detestava e desejava que alguém um dia a humilhasse, colocando-a no seu devido lugar, corrigindo-a de alguma forma. Mas não, não era bem essa minha intenção, não parecia ser, pelo menos. Secretamente, eu a desprezava e a amaldiçoava com zombarias mal pronunciadas. E pensava: como pode alguém suportar uma garota assim? Comi as unhas de meus ciúmes quando vi o homem calvo e atarracado que frequentava sua casa. Tinha ímpetos de saltar pela janela a fim de defendê-la, quando os ouvia discutindo ostensivamente. Sentia que minha obrigação era resgatá-la de alguma maneira, salvá-la daquelas canções dissonantes e daqueles tamancos, enfim, apesar de tudo, eu agora pensava: como é que ela podia suportar um homem daqueles? – que, aliás, tinha idade para ser seu pai. Isso realmente me incomodava, pois eu me sentia com algum direito sobre ela, só porque costumava espiá-la de meu quarto, mesmo torcendo o nariz. Não aceitava que se submetesse a um oportunista qualquer, tendo inclusive idade para ser seu pai (mas o que eu queria mesmo era estar no lugar dele), isso até compreender, quando em outra ocasião pude ouvi-la ofendendo-o com bem pronunciados palavrões, que ele era mesmo o seu pai! “Vão à puta que os pariu, o senhor e a mamãe!” Atirei-me na cama, aliviado. No dia seguinte, tornei a espezinhar essa garota em segredo, além de criticá-la e detestá-la, com isso acreditando que pudesse esquecê-la como às outras – o que jamais consegui.
“João Furibundo dos Anjos! Deus o preserve.”
Ainda entusiasmado com as obscenidades onomásticas enumeradas por esse colega malvado do cadastro, não resisti a gracejar com uma senhora que fora procurar um certo papel, ao confirmar o nome invulgar e notadamente cômico de seu marido, que era a quem se destinava o envelope. Não bastasse o prenome, também o sobrenome e o inevitável trocadilho decorrente da associação de ambos, tratava-se, de fato, de uma circunstância pitoresca e muito rara. “Puxa!”, disse eu, sorrindo. “Esse foi premiado, não é? Loteria mesmo…” A mulher irrompeu em prantos, e eu não pude fazê-la parar. Uma colega a levou ao lavatório, outra arranjou-lhe uma aspirina, outra ainda aproveitou para hostilizar-me. Só mais tarde, eu soube que se tratava de uma viúva de dois dias, que o desafortunado cidadão já não se envergonhava de seu nome, e o que ela tinha ido buscar era justamente a notificação do seguro de vida.
Lembro-me de um escravo que morreu em sua própria mesa, caído sobre os papéis, sim, isso mesmo, sem dar um pio – aneurisma, contavam os mais práticos. Por alguns dias, todos pareceram algo alterados pelo insólito daquele episódio chocante: quase não se comentava outra coisa. Esses dias logo passaram. Que mais?
“Porcinéia Pato! Porcinéia Pato!”
Em meio à rotina de intrigas mal disfarçadas, ouvíamos os nomes sombrios de nossos superiores (Leôncio e Barradas). Que nunca apareciam.
A seta de Verena – Guia de leitura
31. Se é que eu suportava alguém… – sequência
29. Esses homens… – anterior
Imagem: Diego Velázquez. Cabeça de rapaz rindo. 1630.
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