Office in a Small City por Edward Hopper

Algo entre dois silêncios

Desde o começo, eu vinha tentando evitar que isto parecesse triste ou trágico, não sei.
Tenho lido pouco, pouca coisa ou quase nada tem despertado minha atenção.

Nessa mesma noite, ouviram um grito. Algum edifício próximo, quem sabe. Júlio acordou primeiro, foi à janela. Bruno praguejou, protegendo-se com o travesseiro, logo voltou a dormir. Um grito talvez de um homem, talvez uma mulher. Vindo das entranhas de um ser humano ou do que alguém pudesse manifestar de mais intenso, verdadeiro e desesperador. Algo (e de uma maneira) como Júlio nunca antes ouvira. Como se uma única pessoa gritasse por todas. Ou gritassem a cidade, os humanos de diversas línguas, talvez todos os filhos da terra.

Bem, bem. Entenda que todos nós por vezes nos excedemos. Desde o começo, eu vinha tentando evitar que isto parecesse triste ou trágico, não sei. Tenho lido pouco, pouca coisa ou quase nada tem despertado minha atenção. Ultimamente, tenho achado tudo muito previsível e chato.

Voltou à cama sentindo-se um pouco idiota. Bruno dormia pesadamente, ronronando de barriga para cima. Júlio não se lembrava de tê-lo visto com alguma espécie de preocupação desde que o conhecera. Irritado sim, quase sempre, nunca o bastante que o movesse a rever um determinado problema. Não necessitava de nenhuma explicação, de nenhuma resposta. Viveria mil anos sem nenhum tormento, nunca um olhar de dúvida, um pensamento inquietante. Júlio considerou seu perfil sob o digital esverdeado. Ali estava o ponto reluzente em seu peito, o minúsculo amuleto metálico, ouro talvez ou alguma imitação: para Bruno, como todas as coisas, era só o que era e nada significava. Contara a Júlio, certa vez, que algumas parceiras chupavam-lhe o crucifixo, prendiam-no entre os dentes no decorrer de seus orgasmos, se possuídas em posições adequadas, Bruno preso entre suas pernas e meio erguido sobre os cotovelos – Coelho talvez dissesse a própria paródia da blasfêmia. Júlio habituara-se aos repentes de irreverência dele e não achava nada engraçadas aquelas bobagens inúteis que só serviam para que ele próprio acreditasse estar sendo sempre muito esperto, como quando se fingira de surdo-mudo ao policial que pretendia multá-lo, ameaçando-o com a apreensão de sua moto, uma radiante setecentas e cinquenta com a qual esquadrinhava a cidade, próximo à barreira do som. Conhecendo-o dessa maneira, sabia que nele predominava a indiferença, o que muitas vezes invalidava a intenção, a ironia, a suposta blasfêmia. Em primeiro lugar, não acreditava em boa parte de suas histórias.

Ainda impressionado com o grito – que não se repetiu, também não gerou outros ruídos de discórdia ou de socorro, como se poderia esperar –, Júlio estirou-se de costas e ficou olhando a escuridão no teto. Apalpou o próprio ventre, retesado pela posição, o tecido elástico que ele podia inflar, tornando-o a membrana de um atabaque ou de algum outro tímpano, sentiu o último oco abaixo das costelas, pensava nas carniças, no inchaço dos afogados, nos cadáveres azuis, de pés duros sobre as mesas, o cadáver de ser alguém, e todos eram, até que novamente se deu conta de uma inteligência viva, com seus lampejos, ansiosa por inúmeras e variadas elucidações, o que se manifestava metafisicamente e o movia outra vez a prosseguir vivendo sem corpo. Adormeceu como o outro, entre abismos, enquanto, sobre a cidade, armava-se sem pressa a imensa lente de incertos matizes, essa que, embora semelhante a todas as suas ancestrais, nunca antes se houvera erguido, e o primeiro dia estivesse ainda por nascer.

“Esta é a estação mais alegre da cidade, bom dia! O melhor som para o seu dia que começa, em mais esta manhã nublada na capital. Pedimos aos motoristas que evitem a Avenida Nacional, preferindo o acesso pelo Viaduto Centro-Sul, por onde o trânsito flui mais rápido, com o fim das obras do túnel. Chuva ao cair da tarde…”

Inicialmente, queria contar-lhe tudo de uma certa maneira, como em um livro ilustrado cujo tema fosse o universo. Não o fiz. Não o faria, se tornasse a começar. Mas assim como os aparelhos registram o ruído do fundo cósmico, incomoda, ao fundo de cada passagem, um rumor surdo que provém sabe-se lá do rastro de que memórias e imagens, de que outros caprichos. De que outras manhãs. Que abismos.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

12. Bruno, o fantasma, e a medusa e… – anterior

14. A grande notícia trágica – sequência

Imagem: Olly Lawson. Noite. 2011.

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