Office in a Small City por Edward Hopper

Esses homens…

O doutor Aguiar, notadamente um homem de talento.
Podia passar da austeridade ao afeto, com pessoas diferentes, claro, como se acendesse uma lâmpada.

Primeiro dia. O doutor Aguiar recebeu-me com tal disposição e tanta cordialidade que eu quase me convenci de seu caráter humanitário. Mas logo pude ver-lhe o fundo da alma, ao observar sua expressão no trato com os demais, particularmente quando encarou com inusitada hostilidade a copeira do escritório, uma senhora passiva, de rosto sacrificado, de quem se poderia dizer que vivia apenas para trabalhar.

“Cadê o resto dos pacotes?”, perguntou seco. “Cadê?”

Eu ali, constrangido e esperando que ele continuasse a me apresentar cada um dos departamentos de meu novo local de trabalho, meu novo hábitat, nada pude senão assistir a tudo de bico calado.

“Então traga! Vamos!”

Ela se virou, obediente. Ele sorriu, outra vez, para mim.

“Vamos lá. Vou lhe mostrar o arquivo morto.”

O doutor Aguiar, notadamente um homem de talento, podia passar da austeridade ao afeto (com pessoas diferentes, claro), como se acendesse uma lâmpada. Um mestre em metamorfoses, desses que primam pela habilidade de improvisação no manejo de máscaras, que é próprio dos canalhas autênticos – embora seja esse, inexplicavelmente, o perfil de inúmeros homens bem-sucedidos. No dia a dia, servia-se daquele tom ponderado e ameno dos que nos tratam como amigos, até perto de sermos iguais, quase como irmãos, mas sem deixarem de nos fazer sentir, de maneira intermitente, que, do alto de onde se posicionam, podem nos esmagar a qualquer momento.

“Cuidado aí com essas ripas!”, falou firme o doutor Aguiar.

Ali estava o rapaz da faxina, mulatinho calado, de gestos lentos, recolhendo o lixo do salão dos fundos, e eu imaginando, no momento, que o alerta servia a preveni-lo de que poderia ferir-se com os grandes pregos tortos e enferrujados que avançavam das tais ripas. Porém, esse rapaz respondeu:

“Sim senhor”, quase sempre a cabeça baixa, “vou tomar cuidado com elas, sim senhor. Mas essas ripas já vão pro lixo, viu, seu doutor Aguiar, elas já tá velha mesmo.”

O doutor Aguiar nem pareceu ter escutado, e tornou a escoltar-me escritório adentro.

“Venha, venha por aqui. Que vou lhe apresentar uma garota… fantástica!”

Levava-me, pelo ombro, a conhecer outra colega de ar melancólico e apático, a duras penas dilatando os lábios, num sorrisinho todo desenhado, enquanto lentamente essa ninfa nada inspiradora me estendia a mão.

“Prazer.”

“Prazer.”

Tive a impressão de que ela observava meus cabelos curtos, particularmente os tufinhos traseiros de meu inadestrável remoinho. Bobagem minha.

Constrangedor, também, foi quando estive de pé, ouvindo dele uma arenga qualquer sobre a minha função: ao trocar o pé de apoio, quase perdi o equilíbrio. E quando estive sentado à frente de sua mesa, ouvindo dele outra arenga qualquer sobre a minha função: sem querer, entre um gesto e outro, derrubei ao chão o porta-retratos com o rosto radiante de sua esposa. Acidentes à parte, nesse dia meu nariz não parava de escorrer. Temendo um espirro de consequências escandalosas, eu mordia com força o lábio inferior, o que ele observou e pareceu estranhar – era algo que minha mãe havia ensinado, mas que eu não tivera ainda oportunidade de testar.

“Vai tudo bem com você?”

“Sim, senhor. Estou ouvindo. Tudo ótimo.”

A certa altura da tarde, o escravo incumbido de ensinar-me o serviço pediu que eu levasse uns papéis para o Expedito conferir, antes de repassá-los ao doutor Aguiar.

“Quem é o Expedito?”

“O quê? Não conhece o Expedito?”, perguntou, com uma careta absolutamente espontânea.

Era natural para ele que todos conhecessem o Expedito, da mesma maneira como se conhece algum apresentador da TV, o presidente da República ou um traficante famoso. Alertou-me, em tom pateticamente confidencial, que o Heitor Expedito era uma espécie de olho do doutor Aguiar, ativo e atento, e pediu que eu tomasse cuidado com tudo o que dissesse perto dele. Misteriosamente, Expedito não ganhava nada com isso. Ao contrário, trabalhava além do horário, sem assinar extras, sacrificava parte de seu intervalo de almoço para adiantar o serviço e estava sempre à disposição da empresa, mas já foi dito, não há muito tempo, que ninguém entende os escravos.

Quando me aproximei da mesa do tal Expedito, tive de esperar que ele acabasse de atender uma colega, a quem aparentemente ensinava a melhor maneira de posicionar algumas planilhas, simetricamente e em sequência, antes de conferir suas colunas, agora como formando degraus ou polígonos em cascata, de idêntica largura.

“As pessoas são diferentes umas das outras”, ensinava ele, “mas sempre tem alguma coisa que a gente pode passar para os colegas, para as pessoas que convivem com a gente, para nós todos melhorarmos cada dia mais, não é mesmo? É ou não é?”

“Ai, eu não consigo fazer isso”, sorriu ela, encantada com a engenhosidade do colega mais experiente.

“Por isso que você não é o Expedito”, ele arrematou.

Não era de estranhar que o Heitor Expedito se mostrasse menos capacitado que a média dos escravos e, ainda assim, ocupasse um cargo ligeiramente mais alto. Sua função não era propriamente burocrática. Ele era o tipo de pessoa que interrompe os outros quando bem entende, que atropela qualquer pensamento em curso que eventualmente traga em si mesmo algum sinal de parecer importante. Algumas vezes, desconfiei que isso fosse intencional: com o objetivo de desfazer, num instante, qualquer conversa que pudesse gerar algum questionamento, impedindo que ganhasse força. No geral, era bem-educado, prestativo, solícito, generoso, propenso a consolar mulheres frágeis… – em suma, um desastre.

Para se ter uma ideia, certa vez ele foi à nossa mesa e mostrou-nos os cálculos que havia feito em casa, no intuito de confirmar índices de uma planilha de arrecadação. Em casa! Elogiou o conjunto de medidas econômicas adotado recentemente, pois concluíra, com nebulosa convicção, que dessa vez o governo havia acertado em seu novo plano. Mencionou um item que supostamente, mas não para ele, favorecia os mais pobres. Um colega tomou-lhe a planilha, apontou detalhes dos mecanismos administrativos e financeiros que lhe haviam escapado, além de explicar-lhe, com metódica paciência, já que para meio entendedor nem a boa palavra basta, que, em pouco tempo, e assim que a histeria do logro passasse, os pobres pobres, que no momento se acreditavam perto de se tornarem menos pobres, acabariam, por dedução elementar, mais pobres. Mesmo assim, dificilmente entenderiam algo do que estava se passando, e culpariam mais uma vez o velho destino e a puta vida. Naturalmente, Expedito não assimilou a indireta. Tinha os olhos escancarados.

“Mas então isso é uma tremenda sacanagem!”

O outro suspirou e soltou os braços no colo, como se dissesse: “Está tudo perdido. Ele descobriu. Vai contar aos jornais.”. Por sorte, o doutor Aguiar havia encontrado uma função para o Expedito. Esses homens…

A seta de Verena – Guia de leitura

  30. O escravo se diverte – sequência

28. Eu era um adulto agora – anterior

Sobre o livro

Imagem: Théodore Géricault. Retrato de um cleptomaníaco. 1820.

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