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Eu era um adulto agora
Eu não era um medíocre qualquer, era um medíocre especial: eu tinha um plano.
Eu era muito jovem, não foi o que eu disse? E apertava a mão de todo mundo. Meus cabelos eram aparados à americana, e todos podiam ver minhas orelhas. Lá atrás, no alto e à esquerda da cabeça, um tufinho de cabelos lamentavelmente verticais, eretos como meia dúzia de espinhos, insistia em acompanhar-me por todas as fases, desde os idos de minha infância, quando a minha pobre mãe os penteava servindo-se de sua própria saliva, em vão. Lá perto dos quinze anos, época em que cresce nossa necessidade de fotos para documentos, eu procurava os estúdios do centro da cidade, preocupado com o tufinho rebelde e premeditando disfarçá-lo com os dedos molhados, momentos antes, pois não achava prudente confessar-me ao fotógrafo, por exemplo, pedindo-lhe licença para usar a pia do lavabo, quando os havia. Porém, até que me atendessem ao balcão e enquanto a temperatura das lâmpadas aquecia o ambiente lá dentro, os cabelos secavam, e o que se via na imagem final eram os fios resultantes do remoinho rebelde, como um asterisco colado à esquerda da cabeça, sabe-se lá chamando que inusitada nota de pé de página. Pior era que, por conta disso e de minha insegurança, a boca acabava um arco voltado para baixo, assim como num desenho simplificado, desses que se usam para ensinar crianças, resumindo-se apenas as expressões faciais básicas, sem que eu o houvesse percebido enquanto posava, isso ainda sem contar os olhos quase fechados de sono, impressão que passava a foto batida no momento em que os reflexos – os meus reflexos, digo – reagiam ao relâmpago gerado pela câmera. Por vezes, chegava a procurar outro fotógrafo no mesmo dia, resmungando contra os maus profissionais, que sequer prestavam alguma atenção aos seus fregueses, até compreender que não havia muito que fazer, o rosto era aquele, não havia remédio. “Sente-se aí, por favor”, pedia o fotógrafo, orientando-me na postura correta, arrumando-me os ombros, posição e altura da cabeça. Mas antes mesmo que eu ensaiasse os lábios num disfarçado sorriso que os corrigisse previamente do arco espontâneo ou fixasse a mais razoável abertura das pálpebras para evitar-se a expressão de sono, ou para que não parecessem os olhos arregalados demais como num susto, nem fossem os de um míope sob o sol, antes mesmo que eu pudesse assimilar, uma a uma, tais minúcias exigidas pela vaidade, eis que o bárbaro fotógrafo disparava o diafragma.
Mas isso tudo parecia já haver passado. Eu era um adulto agora. Com alguns hábitos de adolescente, registre-se. Queria um mundo melhor. Pensava que a vida era só para ser vivida, como todos os que nada sabem do universo. Por isso, nem a rotina nem o que eu era me incomodavam. Assistia aos programas do horário nobre. Acreditava no governo civil. Assinava tudo o que pudesse salvar as baleias e dar mais direito aos índios. Tinha certeza de que a reforma agrária não tardaria a instalar-se amplamente em todo o território nacional. Admirava alguns atores de cinema só porque faziam uma cara exatamente adequada àquele momento da cena, geralmente sujos de fuligem e após intensos conflitos. Enrolava cuidadosamente as mangas de minhas camisas estampadas, pouco abaixo do cotovelo, não muito, as mulheres gostam assim. Chegava pontualmente ao trabalho, motivo de orgulho e de autoestima permanente. Suportava rotinas pesadas, conferindo papéis de formatação idêntica – por vezes, o dia todo. Mas, no fundo, não importava, de fato, isto ou aquilo que me acontecesse. Porque eu iria contar tudo. Nada estaria perdido. Tudo seria resgatado, em nome do bem-estar dos povos, que encontrariam ali, em meus textos, um registro da vida cotidiana de nosso tempo, com suas inconcebíveis injustiças, o que certamente serviria a provocar exclamações súbitas de indignação em todos aqueles que porventura as conhecessem por meio de minha pena. (Eu não deveria dizer isso. A bem da verdade, eu tinha uma máquina de datilografar.) Sim, com certeza, eu tinha algo a fazer. Não estava apenas vivendo e passando pelos dias, como todos aqueles que trabalhavam comigo. Eu não era um medíocre qualquer, era um medíocre especial: eu tinha um plano. Lia livros sobre fenômenos inexplicáveis. Escrevia versos. Apertava a mão de todo mundo, como já dito. Tinha até um despertador.
Esse velho despertador, que ainda hoje possuo, costumava atrasar ou adiantar conforme sua própria vontade. Eu podia ouvir a aceleração de seus tiques desritmados, como se ele tramasse trair-me furtivamente quando eu já quase adormecia. Só por acaso tenho esse incrível mecanismo. Já era usado quando o ganhei de um inimigo. Nunca estava certo, mas isso não era o pior. Sempre detestei relógios. Principalmente quando estão certos.
Todos os dias, no caminho para o metrô, eu cruzava com uma nissei atraente e pontual que descia em sentido contrário e tornava mais excitante a minha manhã. Eu observava a agradável variação de sua indumentária – seus vestidos, bolsas e calçados, de acordo com o clima e as estações do ano. Verdade é que quase nos tornamos íntimos, de tanto ela fingir que não nos víamos. Quando estava adiantado, eu a encontrava bem acima e perto de perdê-la na saída das plataformas. Atrasava-me, dava de cara com ela logo no quarteirão seguinte. Passávamos rentes um ao outro, ela dando-me a ver seu rosto baixo ou meio de lado, com um golpe de cabelos negros e volumosos, ao lançar sua vontade de sorrir, sob um gesto bem disfarçado de não me ver, como também ao voltar-se ligeiramente a um ponto qualquer onde eu não estava; enquanto meus olhos, de um intenso girassol atávico, só aceitavam ser desativados, deixando-a para trás, depois de lhe haver observado infinitamente as pernas. Desde que passara a fazer aquele caminho, ela havia se tornado meu mais belo relógio. E eu pensava: como é bom viver. Apesar de estar trabalhando.
De fato, há momentos suportáveis.
29. Esses homens… – sequência
27. Das balanças à justiça: o cego era eu – anterior
Guia de leitura | Sobre o livro
Imagem: Hieronymus Bosch. O jardim das delícias (detalhe). 1480-90.
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