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Das balanças à justiça: o cego era eu
Naquela época, eu apertava a mão de todo mundo.
Antes de conseguir emprego como escriturário, eu já havia sido escravo numa fábrica de balanças. Uma firma antiga, dessas que ostentam logomarcas comemorativas por 50, 80, 300 anos sem falir, e nas quais se lê algo como: meio século de qualidade comprovada e tal. Só os compradores não acreditavam nisso. Mas a firma mantinha uma legião de escravos-vendedores que conseguiam empurrar aos comerciantes menos atentos seus catálogos e suas balancetas, cujos modelos convincentes bem disfarçavam o material barato e altamente oxidável com que eram produzidas. Na sala do diretor, conservava-se um posterzinho com a foto da primeira balança que eles fabricaram, um elefante branco impagável. Sim, dava gosto de ver. Em outra parede, como já esperado, o retrato de um senhor de olhinhos brilhantes, bigode vasto e imponente, um dos fundadores daquilo tudo, ícone da honestidade e da virtude, um tio-avô do avô do tio de alguém. Chegava a parecer importante. Esses homens… O diretor, por exemplo, orgulhava-se muito de seu cargo e da plaquetinha com seu nome, que ele posicionava cuidadosamente sobre a mesa. Isso mesmo. Assim são os homens. Esses homens…
No escritório da Leôncio & Barradas Advocacia Ltda. também havia um retrato do governador atual, mandato em curso, e de um dos primeiros salafrários que ajudaram a fundar essa mina de ouro, há quase um século, quando se percebeu que a corrupção não teria fim. A firma já tivera outros nomes, como me confiaram mais tarde: Pórtico Serviços Jurídicos Ltda., Athena Advocacia Ltda., Capitel Consultoria e Serviços Ltda. Mas… (registre-se) a cada vez que a própria firma se envolvia de maneira inextricável em questões complexas, as quais nenhum de nós sabia com clareza explicar, eis que o letreiro à entrada ganhava outros ares e cores. Velhas referências ao nome da rosa, que sejam, não parecem importantes, mas… (registre-se) na prática, fazem a diferença: fazem a troca de roupa, a troca da guarda, a lavagem do dinheiro, o endereço inexistente, lubrificando e reavivando a velha máquina do poder. Assim, até onde se percebe, é prudente que nunca nos esqueçamos delas. Pois não fomos um dia Ilha de Vera Cruz e Terra de Santa Cruz? No fundo, poderia ter ficado este ou aquele nome, que os homens seriam estes e também aqueles: de alguma forma, a vilania e a injustiça que a fértil terra propicia resultariam as mesmas, pois sempre contariam com o apoio, consciente ou inconsciente, de seus cidadãos, desde nossos melhores funcionários, treinados para o bom humor, até a última família periférica que agradece a Deus pela saúde. Parece injusto, não é? Porém, nem todos os injustiçados nos dão mostras de o sentirem assim. “O que é justo?”, lá volta o grego antigo. Mas não creio que tenha eu vindo ao mundo para responder a Sócrates.
O doutor Aguiar apresentou-me aos colegas. Naquela época, eu apertava a mão de todo mundo. Fiquei muito contente quando fui trabalhar com advocacia, pois me sentia próximo de algo mais grandioso (a justiça), que vagamente eu pressentia oportuna àqueles que, assim como eu, gostariam de colaborar por um mundo melhor. Além disso, um ambiente de papéis e livros que… Bem, vamos ser sinceros, não era exatamente isso. Bem, vamos ser sinceros, não era exatamente isso. Eu nem compreendia direito qual era a utilidade de tantos arquivos e pastas volumosas e pesados fichários e calhamaços de tudo, uma vez que… Bem, bem. Algo no ambiente, talvez: aparências, higiene, ar condicionado. Agradava-me que minhas colegas ostentassem certa elegância, que trabalhassem de salto alto, disso eu me lembro muito bem. E não aguentava mais ouvir falar em balanças. Sei, sei: eu era muito jovem.
A seta de Verena – Guia de leitura
28. Eu era um adulto agora – sequência
26. A tudo, faltava um algo – anterior
Imagem: Rembrandt van Rijn. Os negociantes de tecidos (detalhe). 1662.
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