Office in a Small City por Edward Hopper

Por sorte, tudo imperfeito

Vertigem da lua alta que não inspira, ar insuficiente. Respostas talvez encontradas, outra vez perdidas no sempre de minha breve viagem.
Tudo era antes, enquanto. Eu é que cheguei. Você também, claro. Entende agora quando digo vertigem?

O cemitério abandonado, degraus em ruínas por sobre os quais passeia um luar sem cânticos. Sonho com lugares remotos, fora da cidade que sabemos (e a cidade, seus dias, é só o que sabemos), onde se dá o enterro dos pobres, onde os ladrões dividem o dinheiro. Onde se perderam cartas e mapas antigos. Onde o vapor que sobe com as chuvas não reconhece minha efêmera presença e me envolve à sua maneira, como fosse eu imune ao assombro. Gosto de lembrar meus escritos de adolescente, jovem poeta, creia-me. Sei que isso ainda está rascunhado em alguma parte. Vertigem da lua alta que não inspira, ar insuficiente. Respostas talvez encontradas, outra vez perdidas no sempre de minha breve viagem. Tudo era antes, enquanto. Eu é que cheguei. Você também, claro. Entende agora quando digo vertigem?

Talvez devesse escrever poesia, você diz. Grande consolo. E o que faria com isso? Tive um amigo, é verdade, quando acreditava que seria poeta. Escrevíamos poemas e os levávamos aos bares, que eram nossas tavernas de outro século e nos serviam à causa das artes. Ali nos sentávamos, na maior parte das vezes sozinhos, e ouvíamos os versos um do outro. Às vezes entre amigos, também entre mulheres. Nós nos sentíamos dois grandes artistas e nos julgávamos potencialmente semelhantes. Comparávamos nossa parceria a outras grandes duplas da literatura, da música e da pintura, éramos ora eu Vincent, ele Paul, ele Jean-Paul, eu Albert, éramos ambos Wolfgang e Ludwig, tudo isso alimentava nossa vaidade e criava uma grande motivação contra algo que desde então discretamente nos ameaçava, a velha morte. Mais tarde, comecei a duvidar de minha poesia. Mas ainda acreditava que ele, sim, seria um poeta de renome, no mínimo um crítico literário de grande valor, dada a seriedade com que tratava o assunto. Mas, como só gradualmente eu pude compreender, meu parceiro buscava nisso uma maneira de afirmar-se e mostrar-se culto para a admiração alheia. Buscava, acima de tudo, vingar-se de sua infância pobre, do desafeto de seus pais, assim tendo feito da vida uma compensação involuntária de seu passado, não encontrando tempo para qualquer outra coisa que pudesse realizá-lo, como ele também nunca soube, ao longo do tempo, que não alcançara de fato realizar-se – seja lá o que for que isso signifique afinal.

Penso em reescrever meu diário, mas pressinto que tal relato nunca se completará. Nenhum livro é completo, nenhum autor. Vidas e obras, tudo imperfeito. Por sorte. Acho que isto sou eu, o nunca completar-se. Por sorte. Uma mancha como a de meu olho cego perpassa tudo o que escrevo, perde-se sem sequência e naufraga ou emerge enquanto a pena segue seu curso sem jamais revelar-me, a mim que tanto procuro, o menor traço que se desgarre da confusão. Falar em pena, veja-se que poético, quando na verdade tudo são teclados. Queremos ser como os outros, os antigos, os já consagrados, somos cavaleiros, como o foram muitos, queremos a consagração, no fundo nascemos para imitar os outros e já não vemos outra saída. O que é a morte, se comparada ao… Palavras outra vez. A vertigem me perturba, me perde. Tenho essa desculpa. Momentos cômicos? Sim, vá lá. Tenho também esse consolo. Essas ciladas.

Disse que isto nunca se completará, mas não sei: é provável que eu viva muito ainda. A medicina atualmente… Minha saúde, por exemplo… Está bem, não sejamos tão otimistas. Leia, vamos. É alguma coisa, mas não é tudo. Se fosse tudo, estaria mais bem resumido em uma única frase. Não? Pois a obra toda de um só autor pode compactar-se num único livro, estando nós atentos ao essencial. Esse mesmo livro, já tornado estreito, pode ser comentado num único parágrafo, tomando possivelmente umas poucas linhas. Pegue, pegue você mesmo um verbete de enciclopédia, leia, veja e pense com seus olhos: a obra do senhor fulano aponta para tal e qual caminho; ele critica isto e isso outro; sua visão é esta assim, assim. Basta para compreendê-lo. O mais parte da curiosidade própria daquele que o busca, seu gosto por estender-se na leitura. Mas não haverá nada mais importante do que já se tenha lido antes, além de desdobramentos e ornatos. Podemos dizer algo em uma página, em duas ou duzentas, podemos compor um texto que não tenha fim. Não? Deixemos disso.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

11. Adeus, Júlio Dias – sequência

9. Não são fotos como as outras. 3 – anterior

Imagem: Willem de Kooning. Luz em agosto (detalhe superior). 1946.

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Comentários

2 respostas para “Por sorte, tudo imperfeito”

  1. Avatar de Edson Reis

    Um professor de literatura,mais que isso, um filósofo. O texto é entre complexo e simples, melancólico e anacrônico…Imperfeito. Como o autor deseja…

  2. Avatar de Cleber

    Perce, muito bom, como uma análise. Uma filosofia da escrita.

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