Office in a Small City por Edward Hopper

Pateta

Abracei-me ao Pateta. Chorei por ele pela primeira vez. Compreendi que não havia chances para uma criatura tão inofensiva e sem forças.

Aconteceu-me encontrá-lo por acaso, junto ao rio. Três garotos carregavam um saco que se mexia. Perguntei, e um deles afrouxou a abertura para que eu visse parte do dorso de um animal imundo e quase sem pelos. Iam jogá-lo no rio. Segurei o maior deles pelo braço: eu ficaria com o bicho. Estranharam-me, e outro explicou que era só um cachorro velho e sarnento. Insisti, não tinha importância. Mas eles vinham preparados para a execução, o saco vivo despencando da ponte, o maior deles contrariando-me categoricamente, até que eu também resistisse e fosse derrubado ao chão, para que saísse de seu caminho e deixasse de importuná-los. Atraquei-me com todos, um deles prendeu-me com força, dobrando meus braços para trás. Então vimos que surgia, pela trilha da margem, um homem empoeirado e ruinoso, com um galho seco à mão, que era seu simulacro de arma ou cetro. “Moleques!”, bradava. “Vou acabar com vocês!” Cesão Louco perambulava pela cidade, dormia à porta dos botecos e das igrejas, não mais que um inofensivo vagabundo, mas que aterrorizava as crianças com seu aspecto repugnante. Os meninos dispersaram. “O Cesão Louco! Vambora, gente!” “Moleques!”, ele ameaçava, avançando com o galho em riste. Na confusão, apossei-me do saco, corri em outra direção. Contente, mais do que assustado, tive vontade de agradecer ao louco, mas ele já se voltava contra mim – “Moleque! Vou acabar com você!” –, e eu tive que fugir também.

Meu avô trouxera um remédio para a sarna. Ajudava-me a dar banhos no Pateta e a fazê-lo comer, além de haver sugerido seu nome. Pateta era magricela e passivo, incapaz de morder alguém, mesmo se provocado. Meninos da vizinhança queriam saber a raça da malograda mascote. Eu inventara uma palavra que pronunciava com orgulho.

“Você é um mentiroso! Esse cachorro não tem raça nenhuma!”, o mesmo que puxou o rabicho meio pelado do Pateta, antes de sair correndo.

Gritei-lhe palavrões, tomado de ódio. Pateta guinchava de dor, mas não dava mostras de reagir, sequer defender-se de quem o agredia. Eu o tomava ao colo, enternecido, e o levava para casa, para fora do alcance dos perigos do mundo e das outras crianças. Pateta lambia-me o rosto, mas nunca brincava ou corria. Parecia sempre triste e doente. Quando eu saía, tinha de prendê-lo para que não vadiasse pelas redondezas, para que não o encontrassem e, outra vez, não tentassem atirá-lo ao rio.

Mas não só as crianças poderiam machucá-lo. Pateta em frente de casa, dois rapazes passavam, um deles acertou-lhe um pontapé nas costelas. “Olha só, que traste!”, riu esse que eu surpreendi em flagrante, gritando-lhe que fosse chutar a mãe. “Ih, é o dono dele, que azar…”, fez o outro com um cínico aceno de cabeça, brincando com sua própria superioridade – eles pareciam enormes para mim, naquela idade. Pateta deitou-se ao pé do muro, gemendo com fraqueza. “Vai, vai com esse cachorro, moleque!”, disse ainda o agressor, com um gesto de desdém. Abracei-me ao Pateta. Chorei por ele pela primeira vez. Compreendi que não havia chances para uma criatura tão inofensiva e sem forças. Se ao menos soubesse revidar, se não fosse tão passivo…

Na saída da escola, em meio à correria das crianças, fiquei contente em saber que era esperado por meu avô junto ao portão principal, o que era raro. “Vô, o senhor veio me buscar?” Meu avô curvou-se com um sorriso cansado, passando-me às mãos um doce com o papel da confeitaria. “Júlio…”, disse ele pausadamente. “O Pateta morreu.”

Meus colegas também pareciam tristes. Queriam saber o que seria feito dele. “Vamos jogar no rio, Júlio.” “Não, o rio não”, eu enxugando os olhos com as mangas. Pateta ganhou assim seu lugar no mundo: uma cova rasa, aberta com uma colher enferrujada, à sombra de uma árvore sem nome. A relva cresceu com a chuva, por pouco não encobrindo por completo a ripa que eu fincara na terra e na qual havia inscrito, com a caneta porosa que usava para desenhar: PATETA. DESCANSE EM PAZ. Pensava, ao rever a lápide improvisada, como se lhe dissesse com carinho: “Acabou, Pateta. Acabou.”. A palavra paz tinha a letra tremida e a inicial desproporcionalmente grande. Pateta descansava enfim, longe de tudo que pudesse lhe fazer mal, longe das crianças e dos adultos. Eu visitava a sepultura de relva, por vezes debruçava-me ali contra o dia claro, de nuvens travessas e dispersas. Por vezes soluçava. “Acabou, Pateta. Acabou.” E nunca nada eu compreendia..

Bruno percebeu que ele se detinha ali há algum tempo.

“O que é que tem lá embaixo?”

“Nada.”

Júlio virou-se em busca de uma camisa. Ninguém nunca nada compreendia. Bruno se movia entre o quarto e o banheiro, sem saber dos séculos. Sem as catedrais, os círculos de pombos, as inscrições nas sepulturas. Perguntou-lhe as horas. Lá fora, começava a chover.

Os últimos dias de agosto – Guia de leitura

41. Um relógio, por exemplo – sequência

39. Por vezes, como uma canção de ninar – anterior

Imagem: Vincent van Gogh. Pomar com abricoteiros em flor. 1888.

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Comentários

Uma resposta para “Pateta”

  1. Avatar de Elaine Menezes

    Perê,

    Fez me chorar como uma criança! Eu consegui sentir a dor e a humilhação do “Pateta”, eu senti o amor dele, a falta de defesa porque os animais não humanos não são vingativos como nós, animais humanos somos.
    Quantos iguais a ele sofrem por nosso mundo afora, quantos que como ele não podem se defender dos males e crueldades que o Homem é capaz de cometer por pura falta de amor. Os que não têm amor no coração são incapazes de saber o que é estar ao lado de um animal…

    Obrigada por existir!

    Adoro te meu querido amigo, poeta, humano, e homem com coração cheio de amor!

    Beijos da sempre amiga e admiradora!

    Elaine

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