Office in a Small City por Edward Hopper

A sereia suicida

Andersen já começa a punir sua personagem com um recado claro e sinistro de que não há margem para o fracasso.
De que o preço é alto quando se trata de desobediência.

“Por que se diz afogar, como em: ‘Houdini morreu afogado’? Afogado não é quando se morre queimado? Com fogo? Afogar não é com fogo? Afogar em água? Não deveria ser aguagar? Ou aguasar? Talvez… hidrosar: ‘Houdini morreu hidrosado.’ Não é mais certo?”

Constanza tem muitas dúvidas. E eu não quero esclarecê-las. Ou não sei esclarecê-las. Ficam as duas: não sei e não quero. Ela se confunde por conhecer muitos textos, muitas palavras, e pouca realidade. Só viu Houdini em imagens de livros. E, aliás, Houdini não morreu hidros… afogado.

“Vou escrever isso. Vou ajudar você fazendo uma lista, está bem? Aqui no meu caderno de anotações, está vendo? Este de capa verde, aqui. Este é o meu caderno de anotações. Para todas as coisas que existem. Está vendo? Isso mesmo. Registro nele todas as coisas que existem, para que nada se perca. Estou anotando suas observações só para não nos esquecermos delas. Só isso. Mais nada. Só isso, entendeu? Para quando você quiser revê-las – mesmo que não sejam compreendidas satisfatoriamente.”

Sinto que ela se aproxima.

“Outra vez. Não sabe o que fazer com seus rascunhos. A seta de Verena não foi o bastante. Tch, tch… Não aprende com os próprios erros, não adianta.”

Detenho o gesto, paro de escrever. Não entendo. Foi ela quem começou. Estou registrando suas dúvidas para que um dia… Ah! Perda de tempo. Ela não as entende como dúvidas, só quer brincar com as perguntas. Não devo mesmo lhe dar atenção. Sim, é a isso que preciso prestar mais atenção: não lhe dar atenção. Continuarei errando, se achar que for certo. (Como é fácil cair num paradoxo, que triste.) Meus erros podem ser erros sob critérios alheios, que não os meus. Não acho que errei. A seta de Verena tinha que atingir algum alvo. Tinha de ser assim, quando foi assim.

“Seus mestres o ensinaram a sempre ter ideias dentro de um mesmo projeto. Mas isso nem passa pela sua cabeça. Parece que não aprende. Não aprende.”

Quem não aprende é ela. Geralmente escrevo um livro em resposta a outro. O alvo era eu. Não os meus mestres.

“Coesão é aumentativo de coisinha?”, ela ainda, discretamente divertida. “A solidão é sólida? Sereias são sérias?”

Não estou anotando nada, já fechei o caderno verde. Em outra língua, Constanza faria outros arranjos. Uma criança brincando de letrinhas. Mas, por sorte, calha de algumas dessas brincadeiras dela me devolverem a algo que eu pretendia fazer perto de uns dias atrás. Por sorte. Alegrias de coincidências. Era algo sobre as sereias – que ela pergunta se são sérias. Particularmente, sobre uma sereiazinha que muitos conhecem, eternizada por Eriksen, junto ao mar de Copenhagen.

A pequena sereia

Uma de seis irmãs, a sereiazinha vive sua infância no reino de seu pai, de onde ela poderá sair para conhecer o mundo aqui em cima quando fizer 15 anos. (Só uma olhadinha, claro. Nada de ter ideias.) Antes disso, está proibida de deixar os domínios aquáticos estabelecidos. Certo? E não é fácil subir à tona. “A profundidade é tão grande que nenhum cabo de âncora alcança o fundo”, esclarece nosso amigo autor. Antes disso, descreve: “Lá fora, no alto mar, a água é azul como pétalas de centáurea, e clara como o vidro mais puro.” Duvido. Bem, mas as sereiazinhas tinham um jardim onde brincar e fazer coisas, já que não havia nenhuma escola por perto. Nesse jardim, “as flores eram como um fogo vivo, movendo sempre as hastes e as pétalas.” Sim, uma após outra, as meninas entrando na puberdade. Uma escadinha de seis degraus, meia dúzia de irmãs rumo à adolescência, primeiros desejos, vermelhos e vivos. Tanto que a pequena sereia, nossa menina em questão, só queria flores com brilho vermelho. E ainda isto: “Enquanto suas irmãs enfeitavam o jardim com as coisas mais exóticas, provenientes de navios naufragados”, ela instalara em seu jardinzinho, veja só: “uma coluna de mármore representando um belo rapaz, esculpido numa pedra branca e límpida.”.

“Uau…”, Constanza pronuncia mansamente.

Parece mesmo que nela a efervescência dos hormônios está à flor da pele – o que é a coisa mais normal do mundo nessas idades, não é mesmo? E (não se explica por qual motivo) ela era diferente das irmãs mais velhas, “uma criança estranha, quieta e meditativa.”. Por que isso? Por que só ela sente as cócegas da malícia? Por que só ela sonha com um homem? Para Andersen, o desejo sexual parece uma anomalia. Ele sempre pune as personagens que se atrevem a experimentar algo fora das regras sociais orientadas por um forte moralismo, com o qual ele claramente compactua.

“Mas ela era quieta e meditativa”, observa Constanza, intrigada. “Não parece fogosa como você diz.”

Reprimida, podemos dizer. Não se mostra. Não fala muito. É uma maneira inteligente de tramar. O que a move, nessa fase, é conseguir a realização de seus desejos. Tudo o mais cai para segundo plano. Imagine então as obrigações de conduta. E todas as coisas chatas do reino de seu pai.

“E as irmãs dela buscavam coisas exóticas. Exóticas! Não seriam também sinais de sensualidade?”

Essas tralhas exóticas não significam nada mais do que formas inofensivas, já que eram permitidas. Uma das irmãs deu ao seu canteiro a forma de uma baleia. Outra, a forma de uma sereia mesmo. Grande coisa. São figuras neutras, que nós, aqui em cima, vemos pela janela, um cachorrinho ou um cavalinho passando. Elas ainda não saíram da infância, não há perigo. E são mais velhas do que a nossa heroína, que já se encontra carregada, mas carregada de vontades. Eu mencionei que ela era a caçula?

“Não sei. Não.”

Mesmo assim, para não deixar dúvidas, vou transcrever. “Para ela, não havia prazer maior que ouvir falar no mundo dos homens, lá em cima. Fazia a velha avó contar tudo quanto sabia a respeito de navios e cidades, homens e animais.

“Muito interessante. Homens e animais…”

Sim, isso mesmo. As irmãs dela nada sabem sobre isso. Mas a avó já passou pelo sexo. Conhece um homem na cama e um homem fora dela (fora da cama, digo). Navios e cidades. O homem na vida prática, o homem cidadão, empreendedor e trabalhador, e o homem tornado animal, o animal cheio de caprichos em que se transforma secretamente, na posse de uma… A-ham! Em companhia de uma mulher.

“Eu já ia corrigir.”

Bem, a sereia deu sorte. Quando chegou sua vez de subir à superfície, assistiu a um naufrágio e acabou salvando a vida de um príncipe que ia tranquilo como tranquilo ia em todas as viagens – só que, dessa vez, numa desastrada embarcação.

“Sorte mesmo, hein? Isso é normal nos contos de fadas, eu sei. Parece que não há outra maneira de as coisas acontecerem. Sempre a sorte.”

É quase a mesma sorte de Adolfo ao socorrer a vítima do atropelamento em frente à casa de Miloca, sua pretendida, lembra disso?

Constanza corrige. “Ela não foi atropelada. Foi abalroada! Apenas caiu no meio da rua.”

Ah, mas que coisa! Que seja. O pretexto é o que vale. Então, depois de destroçado o navio e resgatado o jovem aristocrata, que permanecera inconsciente o tempo todo… Os outros que se danem, não é mesmo? E morrem como ratos, vê como é? Não têm importância nenhuma, os coitados.

“Não mude de assunto.”

Um-hum. Onde estava? Certo. Aqui, nesta página. A pequena sereia teve de deixar o tal príncipe, desacordado, junto a uma margem, perto de um templo, onde uma outra garota surgiu para completar seu salvamento, pois as sereias, como sabemos, não podem sair da água. Então, encontramos isto: “Ela sempre fora retraída. E dali por diante tornou-se ainda mais melancólica.”. Estranha. Retraída. Agora melancólica. Já seriam os sinais de seu estado depressivo posterior? Bem, deixemos isso para os especialistas. Nossa abordagem é apenas literária, não é mesmo?

“Mas que fingimento, que hipocrisia. Você diz o que quer e cai fora quando não conhece o assunto. Não sabe nada sobre isso, admita. Literária, sei.”

Já li alguma coisa, não sou tão ignorante. Mas não importa. Falando em abordagem, a tal mocinha que veio arrematar o resgate do príncipe era uma coisinha de linda. Esses românticos… Ninguém escapa.

“Bom, e a sereia, coitada?”

Claro que ela entristeceu e se ressentiu muito por não poder prosseguir no atendimento e nos primeiros socorros ao belo rapaz. Fez a parte mais importante, livrá-lo de morrer afogado, e ninguém viu.

“Agora é com os paramédicos”, conclui Constanza.

Não, não. Essa história é antiga. Pensei até que a conhecesse.

“Conheço, sim. Mas não lembro direito”, ela declara meio evasiva, meio defensiva.

Todos dizem que conhecem essas histórias todas. Mas poucos as leram de verdade. Se os lembrarmos disso, podem até se ofender. O que sabem vem pelo cinema, escutam de outros…

“Eu sei que é antiga”, ela completa. “Todas são.”

Fácil. Uma conclusão simples. Não quero cobrar nada de Constanza, não me importo se ela sabe ou não. Como eu dizia: continuar o processo, o resgate do príncipe, os cuidados… Não ter acesso a essa continuidade deixou a princesinha do mar frustrada e triste, como já visto, como se para ela se perdesse o melhor da festa: cuidar do rapaz, que seria o seu homem – o que, para algumas mulheres, chega a ser mesmo a parte mais importante de um relacionamento. Conheço algumas que acumulam mães e enfermeiras dentro de si, ansiando pela rendição do paciente amado. Tenho umas colegas que perdoaram grandes canalhas só para poder cuidar deles, quando indefesos.

“Não me confunda com uma dessas tontas.”

Não, não confundo, fique tranquila. Quanto a mim, não tenho vocação alguma para me fazer enfermo. Nem para romântico, você sabe.

“Vocação para nada.”

Como quiser. Continuando. “Mas como as sereias não têm lágrimas, ela sofria muito mais ainda.” Viu só? Reprimida até os ossos. Até as pontas dos cabelos.

“Tenho que concordar que você não tem nada de romântico.”

Certo. Até aí, tudo bem. Mais à frente: “Do fundo do mar, ela ouve um distante som de trombetas…”. Trombetas, veja só. Esse Andersen… Em todo caso, trombetas, como anunciando algo.

“Algo do tipo: chegou a hora!”

Não exatamente. Mas é algo, sim. É hora de a sereiazinha assumir seu desejo incontido, seu amor que aflora, assumir essa mulher que nasce de si mesma, adolescente. Quando ouve as tais trombetas, pensa: “Deve ser ele que navega lá no alto, ele, a quem amo mais do que a meu pai e minha mãe, a quem meus pensamentos seguem e em cujas mãos colocaria a felicidade de minha vida. Tudo arriscarei para conquistá-lo…”. Forte isso, não?

“Ahá! Enfim. As trombetas funcionam mesmo como um ato de anunciação, de convocação. Chegou a hora. Eu não disse?”

Sim. E a jovem sereia prossegue, em seu silêncio exuberante: “Enquanto lá dentro, no palácio de meu pai, dançam minhas irmãs (elas viviam dançando e cantando, as inocentinhas), procurarei a bruxa do mar, de quem sempre tive tanto medo, mas que talvez possa me aconselhar e me ajudar.”.

Claro, essa ajuda só pode vir do meio externo, não dos pais, que a reprimem. Veja como sempre corremos riscos pelo amor.

“Pois eu acho que o desejo é mais forte que o amor. Corremos mais riscos pelo desejo do que pelo amor. Estive em livros bem diferentes e vi muitos personagens se destruindo pelo desejo. Mas poucos se destruindo pelo amor. Começa lá em Helena de Troia.”

Você acha?

“Um-hum”, faz ela maliciosa e feliz, esticando o intervalo de tempo entre o um e o hum, como se recordasse algo.

Então a jovem sereia procura a tal bruxa do fundo do mar. Os ambientes subaquáticos se transformam, vão se tornando ameaçadores e perigosos, conforme ela adentra a floresta que cerca o reino dessa senhora mágica, sua consultora, sua esperança. A sereiazinha sente medo. “Por aquele caminho ela nunca andara antes.”

“Já sabemos disso. Ela é virgem.”

Sim, sabemos, não fique me interrompendo a cada minuto. Escute. Ela agora está entrando nos domínios da bruxa do mar. “Passou por entre horríveis polvos, que estendiam os braços e os dedos flexíveis, para apanhá-la.

“Veja, ela já é desejável.”

Espere. Escute o resto. “Viu que cada um deles segurava uma coisa que conseguira agarrar, enlaçando-a com centenas de pequenos braços, como possantes anéis de ferro.” Para uma jovenzinha assim, um obstáculo e tanto, imagine. Centenas de pequenos braços. As sutilezas dos predadores. Os homens, os rapazes… Sabia que rapaz deriva de rapace? Rapacidade, rapina. Como em aves de rapina. Rapinantes. Predadores. Sabia?

“Sabia”, mente Constanza. “E isso dos possantes anéis de ferro… seriam alianças? Casamento, algo assim?”

Não acho. Parecem mais grilhões, algo associado à escravidão, ao aprisionamento. Se bem que os casamentos, naquela época… Mas escute isso, escute só, veja o que aqueles bichos seguravam entre os tentáculos. “Homens mortos no mar, caídos até aquelas profundezas, apareciam, em alvos esqueletos, nos braços dos polvos…”

“Homens, naquelas profundezas? Será mesmo? Os mortos flutuam.

Não importa. Os tais polvos seguravam também lemes de navios, caixas, ossadas de animais terrestres e… e…

“E o quê?”

“… e o que mais a aterrorizou, uma pequena sereia que haviam apanhado e sufocado.

Ahn! Que horrível! Ai, que visão horrível…”, arrepia-se Constanza, toda feminina.

Sim, ele consegue pintar um quadro macabro quando quer. Uma semelhante, uma como ela. Morta e exposta à sua frente. Uma outra pequena sereia. Movida pelos mesmos desejos. Interceptada, capturada no meio do caminho. Talvez um rostinho de pele azulada, sem o sangue de alguns dias atrás, os dias de sua vida, o sangue vermelho de suas carências mais fortes. Andersen já começa a punir sua personagem, com um recado claro e sinistro de que não há margem para o fracasso. De que o preço é alto quando se trata de desobediência.

“Muito mais terrível do que ver as ossadas dos animais e dos marinheiros mortos.”

Sem dúvida. É uma ameaça direta. Os marinheiros antigos que se danem. Estariam mortos de qualquer jeito. Para a sereiazinha, o importante agora é a sua sexualidade, é a sua vida, é a sua vez. Ela passa por esses monstros e encontra a bruxa, que está sentada, “deixando um sapo comer-lhe algo na boca”.

“Um sapo? No fundo do mar?”

Pois é. “Já sei o que queres”, diz a tal feiticeira, adivinhando os pensamentos da jovem. “E queres coisa bem tola!” Tola para ela, que tem outra idade e já não pode seduzir. Para uma adolescente, o sexo é a coisa mais importante do mundo.

“Olha… Por que você não diz: o amor, o desejo…? Coisas assim. Sei que você não é muito romântico, mas… precisa ser tão direto?”

Você sente falta disso, não é? Está bem. O desejo. O amor. Coisas assim. Posso continuar? (Constanza suspira, amarga, um som de F.) Impressionante: a bruxa simplesmente antecipou tudo o que a ansiosa sereiazinha tinha ido lhe dizer. Muitas pequenas sereias deviam ter passado por ela, pelos mesmos processos. Acertou em cheio, detalhe por detalhe. Tudo reciclável, recorrente, repetitivo. A dona bruxa parece entediada de tantos feitiços. Mas aí vem a negociação: trocar a voz pelas pernas. É o seu pagamento, os honorários por seus serviços. “Mas se me tiras a voz, que me restará?”, pergunta a sereia, toda bobinha. Mas é fácil, também para nós, antecipar a resposta da bruxa: “Restará teu belo corpo. Restarão teu andar gracioso e teus olhos encantadores.”. Quem precisa de mais? O corpo, as pernas, quem precisa desses tais olhos encantadores?

“Não seja vulgar.”

Será? Não estamos falando de amor. Estamos falando em conquistar um homem. Com objetivos específicos. A meta estabelecida. O contrato com a bruxa do mar, com dia marcado. A sereiazinha não pode falhar. Vencido o prazo, o feitiço se desfaz. E ela morre.

“Claro que ela aceita. O desejo é maior do que…”

Sim, claro que aceita. A história não pode parar. Como voltar atrás, perder essa chance? Voltar para junto das irmãs abstêmias e carolas? Nem pensar. Vamos à infusão mágica, que a bruxa prepara, do alto de sua experiência. “O vapor formou estranhas figuras, que eram de meter medo. A cada instante a feiticeira deitava novos ingredientes ao caldeirão. Quando a fervura chegou ao máximo, era como se pudesse ser visto um crocodilo chorando.” Que tal? Nossos animadores do século 20 já tinham prontas as imagens de seus melhores filmes, veja só.

“Não saia do assunto, vamos lá.”

Ela reencontra o príncipe. Está nua. Envolta apenas em seus longos cabelos. Ele não se importa, misteriosamente. Ele a trata como a uma irmã mais nova, e aí está a semente da desgraça: ele não a vê como mulher. Não tem desejos por ela. Infelizmente. Misteriosamente. Assexuadamente.

“Contos mágicos”, resmunga Constanza, especialista em absurdos.

E lá está ela, pouco adiante, conhecendo os prováveis futuros sogros, num jantar animado dos ricos. “Formosas escravas, vestidas de seda e ouro, vinham cantar para o príncipe e seus pais. Uma, entre elas, cantava melhor que as outras, e o príncipe bateu-lhe palmas e sorriu-lhe. A pequena sereia ficou triste, pois sabia que ela teria podido cantar com voz muito mais bonita. ‘Ah! Se ele soubesse que eu, para estar ao seu lado, dei minha voz para sempre!’

Que gracinha. Fala-se em escravas com a maior naturalidade. E a feroz competição entre as fêmeas. A voz mais bonita. Nossa menina queria ao menos que o príncipe soubesse que, nisso de cantar, ela era melhor do que a outra, essa outra que…

“Os machos também competem.”

Também. Mas o pior vem agora. O príncipe está de casamento marcado. Com outra, claro. Princesa de outro reino, arranjo das famílias.

“Os pais, como sempre, estragando tudo.”

Mais do que isso. Por uma incrível coincidência, a tal princesinha prometida é a mesma garota que salvou o príncipe em terra daquela vez, lembra? A criaturinha mais meiga e linda que passou pela Terra. Pois bem, quando a pequena sereia percebe, diante de uma concorrente dessas, que perdeu a competição, compreende dolorosamente que o contrato firmado com a bruxa do mar agora terá de se cumprir, na sua pior perspectiva. Ela vai às bodas do príncipe, chega a dançar na festa, de tão fingida, enquanto chora e morre por dentro. Porque agora só lhe resta a morte. “Ela sabia que era a última noite em que veria aquele por quem deixara sua gente e seu lar, por quem sacrificara sua voz encantadora, por quem sofrera indizíveis torturas, sem que ele, o príncipe, o suspeitasse. Era a última noite que respirava o mesmo ar que ele, era a última noite que via o mar profundo e o céu marchetado de estrelas. Esperava-a uma noite eterna, sem pensamentos nem sonhos.” Ela correu grandes riscos, e foi derrotada. Tenho de admitir que, nisso, Andersen mostrou mais a realidade do que a fantasia.

“Foi um golpe duro”, lamenta Constanza. “Ela deveria ter fugido da história enquanto podia.”

Pelo jeito, ela não queria tentar uma fuga, não queria uma nova vida. Depois dessa, não queria mais vida nenhuma.

“Mas a pobre desiste da vida assim, logo após uma primeira experiência? Não soube lidar com sua primeira grande decepção?”

A pobre. Eis uma expressão que não ouço há muito tempo. Constanza traz tais palavras em sua memória de livros, de todos os tempos. É, pelo visto, não soube. Mas… ela ainda tem uma chance: matar o príncipe! Suas irmãs a procuram e lhe acenam do mar, agora sem os lindos penteados que ostentavam antes, explicando que deram à bruxa os próprios cabelos (outro forte elemento de atração sexual entre os humanos) em troca de uma adaga mágica com a qual a caçula poderia assassinar o príncipe, desfazer o contrato, voltar a ser sereia e continuar vivendo.

“Mágica ou não, dá para matar do mesmo jeito. Uma adaga, uma faca, tanto faz. Por mim, esse príncipe não vale nada.”

Não, mas não é o príncipe. Os príncipes dessas historinhas são mesmo uns sujeitos apáticos e sem iniciativa, não são eles que conquistam as mulheres. Não é propriamente o príncipe o objeto de valor. É a sexualidade dela, o que conta. O seu desejo de se realizar como mulher é o que está em jogo, de engravidar e…

“Já está entrando em alguma outra história, pelo jeito.”

… e de mostrar ao mundo que é capaz de passar por todos os estágios esperados de uma mulher saudável.

“Nossa, que machismo ridículo!”

As irmãs a orientam: “Antes que o sol apareça, deves cravá-la no coração do príncipe.”.

“E elas estão mesmo dispostas a salvar a caçulinha. É só matar o sujeito, nada de mais”, ironiza Constanza.

Depressa! Ele ou tu, um dos dois terá de morrer antes de sair o sol!”, as sereias carecas advertem. Com isso, ela desfará o feitiço, terá de volta sua cauda de peixe e poderá voltar ao mar, ao lar. Mas ela não consegue matá-lo. Não. Mesmo numa história mágica, isso não é fácil. Ela se aproxima de seu amado, que dorme abraçado à sua linda jovem meiga doce perfeita esposa, após a noite de núpcias. Ao contrário de uma atitude drástica, movida por um surto de ciúmes, ela desiste de tentar matá-lo. Arremessa a adaga ao mar. Inclina-se e beija-o na testa – enquanto ele, em sonhos, repete o nome de sua esposa, estupidamente apaixonado.

“Ela foi boa. A sereiazinha foi boa. Que situação terrível. Escolheu morrer. Tudo isso foi terrível. Coitadinha. E você acusa Andersen de ingenuidade.”

Quase sempre, sim. É que por vezes nosso Hans é tão ingênuo que não podemos criticá-lo muito.

“E a sereia?”

Depois disso, conscientemente, ela se atira no mar e se transforma em espuma. Por isso não se encontraram mais seu corpo, seus ossos. As sereias, quando morrem, se tornam espuma do mar.

“Sim, mas aquelas tais ‘filhas do espaço’, vindas do nada, entram na história e oferecem a ela a eternidade.”

Tem razão. As fantasias continuam. Andersen é assim mesmo. Vai inventando consolos, como fazem nossos místicos de hoje, aliás, todos best-sellers. A vida e a morte são inaceitáveis para eles. Por isso inventam e inventam…

“Outra coisa. Se elas viravam espuma do mar, de quem era aquele esqueleto, como podia haver o esqueleto de uma sereiazinha nas garras de um polvo?”

Bem observado. Falhas na continuidade, incoerência interna. Distração do autor.

“Ela não parece aquela personagem forte, como você sempre disse. Ela é triste.”

Verdade. Ela é triste. Andersen é triste. Apesar de moralista e religioso, ele não nos deixa muitas esperanças. Ele nos dá poucas esperanças. Forte, eu quis dizer, algo sobre a ousadia dela, da pequena sereia, a coragem de ter procurado aquela bruxa, uma mulher estranha e perigosa, e ter se arriscado tanto, sem que a família soubesse. Essa coragem a difere da submissa Branca de Neve ou daquela ambiciosa enrustida, Cinderela. Na verdade, se você observar com mais estreiteza de raciocínio, o que a sereiazinha não conseguiu foi voltar à casa paterna, encarar a todos, revelar e admitir seu fracasso. Seria uma humilhação muito grande para ela. Preferiu a morte. Andersen era um moralista, como você já viu, e suas personagens, quando agem por desejo, por impulso, por instinto, sofrem punições severas, como aconteceu com a jovem Karen, dos sapatinhos vermelhos. Sei, isso já é outra história. Estou com sono. É isso. Vamos parar por hoje?

“Lamento pela sereia. Conheço muitas histórias tristes. Lamento por muitas dessas moças. Sabe… Não era bom viver entre livros.”

Sei. Mas não tente me fazer chorar. A vida fora dos livros também é lamentável. Eles apenas refletem nossas desgraças, nossa miséria e nossos sonhos frustrados. No fim das contas, podemos lamentar tudo.

“Lamentar é ficar triste por cair na lama?”

Ah, entendi. Já passou a tristeza dela. Outra vez o jogo das letrinhas.

“Quando você diz ‘temperatura mais amena’, quer dizer que a temperatura está mais ou menos? As sereias são sérias? E o urso russo? E a solidão, é sólida?”

Não respondo. Ela já disse isso, está se repetindo. Querendo atenção. Isso é ridículo. Infantil. Ou nem isso. Constanza não me surpreende, mas não posso deixar de observar que ela mudou nos últimos tempos. Parece mais irritante hoje. Digo a ela que eu não a percebia assim antes.

“Parecia tão meiga nas ilustrações.”

Que ilustrações? Ela não se deixa apanhar. E suspira, fingindo enlevo.

“Ilustrações… são lindas.”

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

Outros textos revisitados sem método:  Constanza – anterior

 Um par de amigos, um caso ímpar – posterior

Imagem: John William Waterhouse. Estudo para uma sereia. 1892.

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