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A tudo, faltava um algo
Mas a maioria das empresas é assim, com jardins que nos convencem.
Eu trabalhava como escravo num escritório dito de advocacia, mas por onde circulava toda sorte de documentos e barbaridades. Nos primeiros dias, tentava familiarizar-me com a ideia algo incômoda, meio nebulosa, de estar agora trabalhando num lugar que até bem pouco tempo atrás não existia para mim. E como são assim as coisas, diga-se. Podemos passar a vida toda sem jamais saber de uma determinada empresa, de certa pessoa, de uma cidade do mesmo estado, de uma região que talvez pudéssemos amar, até mesmo um país, com tudo o que nele existe, pois quem me perguntasse um minuto antes onde ficava o Djibuti ou a Suazilândia encontraria um sujeito ignorante e perplexo. Agora, umas pessoas e uns móveis e uns objetos e umas paredes e umas escadas participam de minha vida, das imagens que a memória não para de colecionar, dos detalhes que involuntariamente deflagram novas observações e até questionamentos essenciais, diríamos. Não fosse eu estar ali naquele dia, não teria vislumbrado que isto ou aquilo funcionava daquela ou desta maneira, e nisso entram, inclusive, o trecho da rua onde se situa o escritório, a fachada de uma cor indefinida, o canteiro da fachada em frente, além da estranha, mas sugestiva, logomarca da Leôncio & Barradas Advocacia Ltda., pois como estamos todos fartos de saber, nunca uma empresa ou os homens dessa empresa podem mostrar-se de fato como são.
Éramos cerca de trinta escravos, todos sob os olhares diligentes do doutor Aguiar, tentáculo vivo de uns sócios que nunca se mostravam. Para se ter uma ideia da importância desse escritório – de ramo duvidoso, posso hoje dizer – e do tipo de negócios que eles administravam, basta lembrar que uma vez fomos visitados pelo vice-governador em pessoa. Isso mesmo. Era amigo de um dos sócios. Aliado, digo. Entrou com alguma pressa, passos firmes, expressão obstinada, guarda-costas e uns sujeitos, também enforcados em gravatas, que ninguém sabia quem eram. Foi direto ao sanitário. Quando saiu, mais tranquilo, demorou-se com o doutor Aguiar. Duas escravas bem vestidas, de saltinho, foram solicitadas a fazer-lhes as honras e empurrar-lhes o café da tarde, que normalmente ninguém queria.
Quase todos os termos que andavam na pauta da imprensa e na boca do povo, com relação às decisões do governo, circulavam pelo escritório, em forma de procurações, processos, contratos e outras armadilhas. Títulos como Plano de Reforma Tributária, Indexação Vigiada, Recursos Humanos (eis uma expressão que detesto, detesto!), Controle de Déficit e outras composições com algo de sinistro e subjacente, das quais, mesmo sem conhecê-las a fundo, se poderia dizer que não eram boas notícias para a maioria escrava. Ainda eram frequentes, por esses dias, as lamentáveis interrupções nas redes televisivas, abrindo espaço – muito melhor dizendo: tempo, abrindo tempo, que isso é o que é – para as falas do porta-voz da República, de algum ministro de primeira grandeza ou mesmo do próprio presidente da nação. O que tinham em comum, tratando sua antiquada parenética de situações abrangentes ou de certa questão específica, era solicitarem a cooperação, a compreensão e o sacrifício de todos. Ah, sim! Aí está, aliás, outra palavra que detesto: sacrifício.
Certa vez, quando eu ainda era candidato à vaga de escriturário, enquanto tentava falar ao telefone com o responsável pelas contratações (que era também, convenientemente, o doutor Aguiar), fiquei ouvindo a imitação eletrônica de um orgãozinho executando a velha cantiga de um-mundo-bem-melhor-todo-feito-pra-você. Mas eu andava entusiasmado por aqueles dias: começava, para mim, uma nova era, portanto eu queria mesmo fazer das tristezas estrelas a mais, veja-se onde isso tudo iria parar.
Uma das primeiras situações que me lembra haver presenciado nessa arapuca foi quando um homem de aparência simplória acabou arrastado para fora por dois dos nossos colegas mais robustos, conforme instruções do doutor Aguiar.
“Patife! Canalha! Vou denunciar tudo isso! Trabalhei vinte anos aqui, ouviu? Foram vinte anos da minha vida, Aguiar, seu salafrário! Patife! Ladrão!”
O doutor Aguiar portou-se com discrição. Baixou os olhos, ficou remexendo uns papéis em sua mesa, simulando abrir e fechar pastas, inclusive fungando sutilmente como se vivesse o princípio de algum resfriado, até que o ex-escravo fosse expulso com segurança.
“E finge que não me conhece, porco nojento! Verme! Vou te denunciar à imprensa, à polícia! O país inteiro vai ficar sabendo, filho de uma puta! Canalha!” (Etc.)
O pobre homem estava fora de si. Como se a imprensa pudesse fazer alguma coisa.
“Patife! Verme!” (Etc.)
Curioso é que ninguém nunca sabia ao certo do que se tratava. A tudo faltava um detalhe, uma informação, um algo – ou era sabido pela metade, entre versões contraditórias. Vi mulheres de boa família espumando de ódio e homens maduros lamentando-se como crianças, certamente vítimas de algum negócio sujo que, como sempre, ninguém ali sabia explicar direito.
Quem visse a fachada desse prédio animava-se com uma puta boa impressão. Mas a maioria das empresas é assim, com jardins que nos convencem. Por essas e outras, ainda há tantos infelizes que se orgulham de trabalhar em tais espeluncas, nem mesmo se importando de usar crachás e uniformes. Há, inclusive, secretárias e recepcionistas que gastam quase tudo o que ganham no trato com a aparência, na renovação do vestuário, só porque as instalaram num interior luxuoso. (Ora, mas quem entende os escravos?) E assim como a arquitetura da capital federal age com maquiavélica eficácia sobre a nossa intuição, não exatamente pelo comentado mau gosto das formas, mas pela sugestão de prosperidade e transparência, quem visse o escritório por fora dificilmente adivinharia em seu bojo o mesmo ninho de serpentes que normalmente se criam e se desenvolvem em tantas outras empresas afins. Portanto, se por acaso alguém quiser conhecer esse escritório, de agradável climatização interna, esse antro da advocacia viva, de aspecto limpo e bem organizado, observe ainda que… Pensando bem, é melhor passar por ali a passos largos. De preferência, sem olhar para trás. Não aconselho ninguém a visitar a Leôncio & Barradas Advocacia Ltda. Deve ser o pior lugar do mundo.
A seta de Verena – Guia de leitura
27. Das balanças à justiça: o cego era eu – sequência
25. Eu, um mentiroso crônico – anterior
Imagem: Vaclav Vytlacil. Sem título. 1937.
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