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Marcas de gentis predadores. Abertura (O jogo que ele não quer mais)
Quase sempre, saber o pior é saber a verdade. Quem quer saber o pior?
“Por que você ainda quer saber sobre ela?”
“Por que não? Fico curiosa.”
“Sobre a morte dela, quero dizer.”
“Por que não? Quero saber. Só isso.”
O entendimento entre a claridade e a penumbra, na suíte do motel, influencia, conduz o casal a uma calma estranhamente preocupante, e de alguma maneira ameniza todas as palavras. É como se não pudessem gritar ali, um local sagrado.
“Já contei o pior”, ele ainda neutro, sem ênfase, quase carinhoso. “Ela se matou, eu não disse? Melhor assim? Um tiro no peito, esqueci de dizer.”
“Ana Lúcia… Sempre gostei desse nome.”
Lençóis até a cintura, estão quase sentados na cama. Liana deita a lateral do rosto no peito dele, reacomoda-se. Sobe um pouco a cabeça, e seus cabelos provocam cócegas nele, forçando-o a novas mínimas variações de postura. Danilo esquece um braço passando por trás dela, emergindo de suas costas, mão pousada em seu ombro suave, um gesto involuntário, não está pensando em nada. Gosta de segurar o ombro dela, só isso, é apenas reconfortante, bom de se pegar e sentir. Já contei o pior, lembra de ter dito há pouco. Contar o pior. Será que ela quer saber o pior? Quase sempre, saber o pior é saber a verdade. Quem quer saber o pior?
“Tenho os jornais guardados. Não sei por quê. Mas guardei. Se quiser ver… tem que ir até a minha casa”, sorri.
“Não quero ler jornais”, ela também amável, quase sorrindo, tranquila. “Quero que você me conte. Me conta…”, nesse tom quase infantil, ajeitando mais confortavelmente sua têmpora direita entre o ombro e a orelha dele.
“Eu não sabia. Não fiquei sabendo no dia. Li no jornal.”
“É mesmo? Estranho. Ninguém comunicou você?”, esfrega a ponta do nariz com dois dedos.
“Não, eu nem… Imagina, eu nem…”
“Mas algo assim, como um assassinato… Digo, o suicídio dela…”
Ele pensa, num instante, que deveria contar tudo de uma vez. Imagina que ela já se afasta de seu ombro, passando a ouvi-lo com mais atenção, compenetrada, enquanto ele conta tudo, parte por parte, claramente, cruamente (e talvez, em certos pontos, cruelmente), densamente enfim, porque isso é o que lhe ocorre quando se lembra de Ana Lúcia e de tudo o que a envolve: uma densidade própria, impregnando os lugares. Contar tudo, encerrar para sempre as possíveis dúvidas, os detalhes em aberto, as respostas de bolso, qualquer aparência de mistério nos pontos em que não deveria haver mistério algum. Contar o pior. Saber o pior. Ele não gosta desse jogo de esconde-esconde dos romances policiais, das aventuras de espionagem, e já esgotou sua paixãozinha pelos tabuleiros de xadrez, lá longe, nos anos ridículos de sua adolescência, que felizmente nunca mais voltam.
“Não foi uma notícia de um dia só, entende? Houve desdobramentos, investigações… A arma não era minha. Ela é que a levava na bolsa, e eu nem sabia. Era normal que suspeitassem de mim, eu entendia isso. Afinal…”
Afinal o quê? Não, ainda não. Tente fazê-la esquecer, isso passa. Tente distraí-la, não é difícil, não se entregue tão facilmente. Ela pode fugir de você, esse é um risco real, vocês se conhecem pouco ainda. Pouco mais de um mês, não é isso? Não é pouco para um casal? Por que então abrir todas as frentes, descortinar as fronteiras, devassar todo o passado em uma só noite? Não, não. De jeito nenhum. Você sabe lidar com isso, sabe administrar um segredo, não sabe? Administrar um segredo… – veja como ficou bom. Tenha isso em mente, ela não precisa saber tudo. A menos que você queira mesmo se livrar de tudo.
“Estou ouvindo”, ela diz.
Essa curiosidade acaba absorvida por outros mil lances de sua nova relação, de seu cotidiano cada vez mais pontuado por ela, por Liana. Lances entre outros lances, como no fascinante caso do xadrez. Que você não quer mais.
Marcas de gentis predadores – Guia de leitura
2. O sísifo da Rua Rocha – sequência
Imagem: Paul-Émile Borduas. Aberturas imprevistas. 1956.
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Comentários
Uma resposta para “Marcas de gentis predadores. Abertura (O jogo que ele não quer mais)”
O que é a verdade Senão aquilo que tomamos pra nós, senão uma mentira contada milhares de vezes?
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