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Não são fotos como as outras. 3
As calçadas ficam vazias, e ninguém mais precisa ter piedade.
Ainda um guardião (com certa persistência ao longo de outros dias)
Assim como os mendigos e os inválidos, o homem do realejo deixou de me interessar. O mesmo não se deu com o velho arcado que eu via chegar pela manhã, com sua mala de couro, muito gasta: o homem do sebo. Sua banca, na esquina de uma agência de seguros, no centro comercial da metrópole. Tirava uns livros da mala surrada, punha-se a arranjá-los com os outros, nas prateleiras. Impressionavam-me sua agilidade, a maneira como abria sua banca em meio ao movimento humano e, acima de tudo, sua determinação.
Quando se dava um dia de chuva forte, eu pensava no sebo e em seu dedicado livreiro. Como estará ele agora? Terá tido tempo de recolher os livros? Um vento forte não terá invadido a banca? No dia seguinte, eu suspirava, com uma sensação infantil de alívio, ao reencontrá-lo ali, em seu trabalho e em meu caminho. Feliz porque a chuva torrencial não havia derrubado o sebo nem arrastado o homem com a banca, os livros e tudo. Ocupava-me disso a distância, cuidava do velho livreiro e do sebo, sem que ninguém soubesse.
Apesar de meu zelo secreto, chegou – como chegam todos os dias – o dia em que ele deixou de aparecer. A banca permaneceu fechada por uma semana, e eu soube, pelo porteiro da seguradora, que o homem dos livros não resistira a um ataque cardíaco. Era bastante simples. Em outro dia, desmantelaram o sebo – com livros cheios de histórias de tantas pessoas, de tantos lugares –, e a esquina fez-se vazia, deserta como só as mãos do tempo saberiam deixá-la. Nos dias de chuva intensa, através das largas vidraças do escritório, eu assistia à paisagem azulada dos edifícios castigados. Pensava em todos nós, em nossos dias, nos dias dos tempos passados, nestes mesmos lugares, lugares que também se transmudam e se perdem e se sobrepõem em camadas, desafiando e confundindo nossos conceitos de concreto e abstrato, sem que ninguém dê por isso, e o que por sorte se houvesse preservado em memória era agora um registro âmbar em gravuras antigas. Revia o velho livreiro e sua mala de livros, as manhãs de sol. Como estaria ele agora?
Os últimos homens do dia
Por toda parte, as coisas continuam acontecendo pela única vez. Pouco antes do fim da tarde, os inválidos vão desaparecendo, resguardando-se da noite. As calçadas ficam vazias, e ninguém mais precisa ter piedade.
Na esquina onde se amontoa o lixo das lojas e dos cafés, eu os reconheço: homens em trapos, que chegam antes dos caminhões de coleta e espantam os cães para que não rasguem as embalagens antes deles. Arregaçam o plástico negro e passam a remexer os restos à cata de comida, objetos ordinários. Por vezes, disputam algo disforme, irreconhecível, mas que lhes deve servir à fome. Duram até o dia seguinte, quando voltam a esmiuçar o que sobrou dos cafés.
Dormem sob os viadutos ou encostados às entradas de garagem cobertas. Infestam praças, galerias, escadas de edifícios, portas de igrejas. No verão, auxiliados pelo calor da madrugada, não morrem à noite. Quando volta o inverno, vão escasseando, mas ainda sobrevivem. Alguns, com mais sorte, não resistem ao frio, com isso nunca mais retornando ao lixo. Apesar dos cobertores esgarçados e dos papelões que os protegem do vento, os corpos perdem a temperatura, por causa das grandes baixas, e os indigentes expiram durante o sono, quem sabe interrompendo que sonhos. “Deus dá o frio conforme o cobertor”, repetem os convictos. Os cadáveres amanhecem úmidos de orvalho.
Os últimos dias de agosto – Guia de leitura
10. Por sorte, tudo imperfeito – sequência
8. Não são fotos como as outras. 2 – anterior
Imagem: Robert Richenburg. Pensamentos silenciosos. 1961.
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